sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Naquele Dia Ele Acordou em Paz


      Naquele dia ele acordou em paz.

      Porque acordou em paz, surpreendeu-a com um beijo e ela se enterneceu.

      Porque acordou em paz, tomou um banho demorado, o espírito sereno, sob a água quente a escorrer-lhe pelo corpo e a amenizar seus pensamentos.

      E ela, porque beijada de surpresa, acariciada na alma por um gesto há muito esquecido, dava incentivo à esperança e antecipava o romance com seu amado.

      Porque ele acordou em paz, ela já não murmurava tanto, já não se queixava da vida com tanta insensatez. Abrandou a intolerância da véspera e iniciava o dia com o coração mais leve.

      E quando os dois encontraram-se para o desjejum, ela não praguejou contra Valquíria, a auxiliar doméstica, como sempre. Antes disso, teceu comentário suave, muito mais ameno que de costume, mais por hábito, que por prazer.

      E porque ela não praguejara, também ele, que estava em paz, decidiu permanecer calado. Calou o discurso inútil que iniciaria sobre a administração doméstica e não cogitou na hipótese provocativa de demitir a assistente do lar. Também não reclamou da atitude da esposa, de sempre praguejar, de sempre estar insatisfeita com a vida, porque ela parecia serena, e ele acordara em paz.

      E porque ele não fez o seu discurso, nem cogitou na hipótese de demitir a auxiliar doméstica, nem tampouco reparou no desagradável praguejar da esposa - que não houve - nem em seu hábito de reclamar da vida, por isso ela não lhe falou dos débitos bancários cujo pagamento o marido olvidara e, ao invés disso decidiu, sem nada lhe dizer, que, num gesto de boa vontade, os saldaria ela própria, naquela mesma tarde.

      Foi assim que ele, porque acordou em paz, chegou ao trabalho também em paz. Não se sentia em inferno conjugal, não maldizia a esposa por reclamar de todos os fatos cotidianos, nem porque tornara, mais uma vez, insuportável, o seu desjejum, com um praguejar interminável! Não estava irritado consigo mesmo por haver deixado de pagar os tais débitos bancários e dar ensejo a mais um motivo de insatisfação e discórdia. Não estava irritado com nenhum desses fatos, porque nenhum deles aconteceu. E nenhum deles aconteceu, porque ele acordou em paz.

      E, então, em paz, compareceu ao trabalho pontualmente. Não se atrasou trinta minutos, como ocorreria se aquela discussão doméstica tivesse acontecido. E, porque não se atrasou, teve tempo suficiente para revisar com tranquilidade o assunto da reunião das nove e trinta da manhã. E, havendo revisado sua apresentação, com serenidade e lucidez, porque estava em paz, percebeu um erro no cálculo dos custos que, em outras circunstâncias, não perceberia; além disso, atentou para a possibilidade de modificar radicalmente a primeira parte do projeto, mudança esta que produziu um impacto positivo aos olhos do cliente na reunião que se encerrou dali a duas horas.

      Por isso, porque acordou em paz, porque não compareceu com atraso ao serviço naquele dia, porque seus pensamentos estavam lúcidos e coesos e porque, em decorrência de todas essas circunstâncias, não somente pôde corrigir a tempo os cálculos de custos, como também apresentou uma ideia inovadora responsável por conquistar definitivamente o cliente, por tudo isso, ele não somente deixou de ser demitido naquele mesmo dia - o que teria acontecido de outro modo - mas foi, logo após a reunião, chamado à sala de seu superior, satisfeitíssimo que estava com seu trabalho, sendo promovido ao cargo de Vice-Diretor de Departamento.

      E ela, porque ele acordou em paz, decidiu caminhar, decidiu pensar na doce surpresa daquele beijo matinal, acalentando ternas esperanças a respeito do relacionamento. E, caminhando, dirigiu-se ao banco. Lá, sentindo-se leve como uma pluma, pagou os títulos em atraso, pouca atenção prestando a esse fato burocrático e corriqueiro.

      E isso, o fato de ela haver quitado os débitos exatamente naquele dia, foi providencial. Porque ele, se não tivesse acordado em paz, teria sido demitido e, mesmo deixando o escritório muito cedo, não teria se dirigido a sua casa, nem ao banco e não teria saldado dívida alguma. Teria vagueado pela cidade, deprimido e sem rumo, apenas por não ter acordado em paz.

      Mas, porque ela efetuou o pagamento, mesmo distraída e com o pensamento evanescente, os títulos não foram protestados pelo banco dentro de exatamente quinze dias, como inevitavelmente se daria se ele não tivesse acordado em paz. E já que isso não aconteceu, não se deu também nessa data vindoura, a infeliz discussão motivada por esse fato financeiro desastroso na vida do casal, quando ambos trocariam acusações gravíssimas, o que culminaria na ruptura do matrimônio.

      Ao invés disso, porque ele acordou em paz, as contas foram pagas, e, porque ela decidiu caminhar até o banco, alegremente comovida com aquele beijo, por esse motivo, quando retornava, reparou na existência da floricultura a meia quadra de distância. E porque reparou na floricultura, também notou os belos cravos vermelhos, a lembrarem o dia no qual conhecera o seu amado. Então, por causa daquela paz, daquele beijo, daquela decisão de pagar as contas ela própria e de caminhar, ela acabou comprando cravos e teve a ideia de preparar um jantar especial para o marido...

      E ele, por ter sido promovido, por haver passado um dia memorável no escritório, ao final do expediente não se dirigiu diretamente ao lar. Satisfeitíssimo que estava, pensou na esposa com inesperada ternura e desviou o caminho com a intenção definida de lhe comprar um buquê de rosas. E por estar assim tomado de uma emoção terna e amorosa, escreveu-lhe num cartão, carinhosamente, as mesmas palavras que pronunciara no dia em que, pela primeira vez, declarara seu amor a ela.

      E retornando ao lar, porque acordou em paz, viu-se diante de uma mesa posta com ternura, de um arranjo de cravos carinhosamente preparado e de um ambiente de candura e romantismo inesperados, denunciando sentimentos que há muito tempo não contava ver brotarem no coração de sua mulher.

      Ao entregar-lhe seu buquê de rosas, acompanhado de declaração tão cândida e suave, suas almas se enlaçaram e aquele instante se consumou numa noite de amor sem passado, nem futuro, cujo presente duradouro foi como mágica a transformar-lhes as vidas daí para sempre...

      E, finalmente, naquele dia especial, essa magia de “alguém que um dia acorda em paz”, produziu, meses depois, uma linda criança de cabelos escuros e olhos azuis, a quem chamaram Pedro e que ainda daria muito o que falar...

Gilberto de Almeida
16/08/2013

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Depois das Ruas - Capítulo 8 - E Depois das Ruas?

Se ainda não leu, veja os capítulos anteriores deste conto:

Capítulo I - Impacto de Uma Noite
VIII - E Depois das Ruas?

      Pedro realmente despertara sedento... E totalmente desnorteado. A princípio, quase despencou do leito ao tentar levantar-se de supetão, sem se dar conta de estar atado a um complicado aparato ortopédico.  Esse pequeno susto foi como um gatilho a trazer o jovem de volta para os domínios da realidade e disparar a exibição vigorosa de uma retrospectiva nos painéis atordoados de sua mente superexcitada. Em um minuto, o adolescente assimilou por completo os detalhes possíveis de sua situação. Seu cérebro jovem e dinâmico traçava alternativas para explicar a si mesmo os fatos incríveis de que se rememorava. Ávido por preencher as lacunas de suas memórias, inclusive referentes ao período durante o qual estivera desacordado, mas, ao mesmo tempo, extasiado pela alegria de contemplar as carinhosas figuras de seus pais no instante exato de seu abrir de olhos, Pedro acabou por protagonizar com seus parentes uma verdadeira efusão de esforços de comunicação e demonstrações de afeto desencontradas, digna dos habitantes de Babel. Enquanto a tia esbaforida procurava apressadamente encher um copo descartável com água para amenizar a sede do menino, correndo para isso à pequena geladeira do apartamento hospitalar, os pais se debruçavam sobre o garoto de maneira intempestiva, entre alegria e lágrimas, palavras de surpresa e de gratidão, entremeadas por inúmeras perguntas e por ansiosos gestos de afeto! Ao mesmo tempo, o jovem também fazia suas múltiplas perguntas, sem esperar pelas respostas, enquanto abraçava os queridos genitores entre exclamações de júbilo! Quando a tia, apressada, retornou em meio a beijos e abraços, o primeiro copo d’água não teve outro destino senão a previsível trajetória de queda até o lençol da cama do convalescente, onde se entornou, transformando aquela cena num espetáculo ainda mais espalhafatoso. De fato, foram necessários vários minutos para que alguma tranquilidade se estabelecesse no recinto e Pedro saciasse sua sede, ou parte dela. Passados esses minutos, a sede do jovem convalescente começaria a mudar de foco!

      Na próxima hora ou duas, os parentes colocaram nosso protagonista a par do quanto haviam podido apurar sobre a sua trajetória, desde a noite na Avenida Paulista até aquela manhã no hospital. As informações não eram muitas e as lembranças do garoto frequentemente pareciam não ajudar. O episódio do martírio na delegacia assumia contornos de acontecimento fadado a transformar-se num mistério irresoluto; a não ser por lampejos muito breves, mais semelhantes a terríveis pesadelos, a maior parte dos fatos ocorridos naquela madrugada mostrava ter se esvanecido da memória do garoto, numa demonstração divina de misericordiosa amnésia. No entanto, apesar da felicidade de estar na companhia dos pais e da curiosidade a respeito de tudo quanto lhe acontecera, o estado de saúde do rapaz era precário. Breve, todos reconheceram estar ele exausto e necessitar de um pouco de silêncio. Ninguém, contudo, queria ver o adolescente adormecer novamente, temerosos de vê-lo retornar ao estado comatoso. Decidiu-se, portanto: o pai vasculharia a enfermaria, para providenciar imediata avaliação médica, a querida tia aguardaria no corredor e apenas a mãe lhe faria companhia até o comparecimento do plantonista daquele turno...

      E assim, agora desperto, porém com maior tranquilidade interior, uma vez passados os momentos de euforia inicial e enquanto sua mão direita era afagada pelas mãos carinhosas da querida mãe, o jovem pôde, no silêncio do seu fatigado recolhimento, dar vazão às conjecturas sobre o que lhe teria ocorrido no dia seguinte à manifestação na Avenida Paulista. Buscou, em reminiscências de poucos anos atrás, as palavras de um amigo de ascendência indiana a respeito de certo estado de êxtase, a que os mestres espirituais do oriente conseguiam chegar através da meditação e, no qual, o presente, o passado e o futuro se misturavam. Na ocasião, ficara impressionado com tal possibilidade, mas nada mais! Nenhum outro interesse tivera na questão. Agora, tendo passado por aquela experiência estranhíssima, já não achava coisa alguma impossível. Apesar disso, a presença indubitável do mundo real a sua volta, das dores vivas pelo corpo, o clamor de uma realidade muitíssimo material e incontestável, o convidavam a uma justificativa mais racional para os fatos peculiaríssimos em sua memória, que a hipótese de um transe exotérico inexplicável.

      E assim, pouco a pouco, revendo mentalmente cada situação vivida naquele dia surreal em companhia de seu duplo-ego do futuro, foi se convencendo da hipótese mais plausível de haver sonhado com toda aquela intrincada trama, enquanto se mantinha desacordado, após haver recebido uma pancada violenta na cabeça... Essa hipótese era mais racional, mas em seu íntimo o jovem resistia a ela...

      Estava Pedro absorto nesses pensamentos quando adentrou o quarto a enfermeira de plantão:

      - Maravilha! – exclamou – Nosso jovem adormecido está de volta! Que ótimo!

      E assim dizendo, pediu licença para a mãe carinhosa para refazer o curativo existente sobre a cicatriz cirúrgica na perna do rapaz. A mãe, prontamente, foi juntar-se, no corredor, à tia do adolescente, esta já em conversação amistosa e entusiasmada com uma senhora que viera, acompanhada da filhinha, visitar um parente internado no mesmo andar. Logo se verificou que a tal senhora, por incrível coincidência, residia a apenas duas quadras da moradia da Sra. Nascimento e de sua família. Em minutos, as três madames já se entrosavam perfeitamente e trocavam telefones prometendo estreitar a nova amizade.  A afinidade se dava tão naturalmente e os assuntos atraíam de tal maneira sua atenção que a pequena demora do pai do garoto, ausente, na busca ao médico plantonista, foi ignorada temporariamente.

      No quarto do menino, enquanto isso, a enfermeira desfazia o curativo em sua perna direita, antes de trocá-lo por um novo. A cabeça do rapaz, que se submetia ao procedimento com desinteresse, ainda perambulava pelo terreno da dúvida em relação a suas lembranças extraordinárias. Teria realmente sido um sonho? Toda sua experiência tinha sido muito viva e real... Teria sido uma alucinação? Talvez isso! Agora eram três possibilidades: sonho, experiência transcendental ou alucinação! Que fazer com tudo isso?

      - Talvez vá doer um pouco! – A voz da enfermeira, a segurar uma almotolia, prestes a derramar sobre o ferimento um líquido de cor escura, arrebatou-o de seus pensamentos. Foi então que Pedro, agora sem as ataduras e bandagens, pôde ver pela primeira vez a cicatriz cirúrgica, entre cinco a dez centímetros de extensão, logo abaixo do joelho direito, sobre a face lateral de sua tíbia... Era a cicatriz restante! O rapaz paralisou! Meu Deus! Aquilo era real! A única cicatriz que o velhinho do futuro possuía e ele, Pedro, não! Agora já não havia nenhuma diferença...

      Foi assim que Pedro, na fração de segundo decorrida entre o momento em que vislumbrou sua cicatriz e o instante seguinte, quando a enfermeira derramaria o antisséptico sobre sua tíbia, descobriu a verdadeira natureza da sua sede! Agora ele tinha sede de mudança! Tinha sede de construção! Pedro iria se empenhar na tarefa de construir um país melhor, de redefinir o conceito de democracia. E ali, aparentemente incapaz, restrito a um leito hospitalar, foi que seu pensamento vibrante, pela primeira vez, antecipou planos para o futuro, desenhando cenários, calculando hipóteses numa vertiginosa maratona intelectual. Pedro começava a se perceber como um revolucionário... A citação do venerável cicerone do futuro lhe tomava o Ser e pulsava fortemente em suas artérias, dominando-lhe completamente o pensamento:

      “- Não há mais nada capaz de justificar o voto indireto, sob qualquer ponto de vista! A tecnologia de hoje permite ao cidadão representar-se a si mesmo! Isso elimina as terríveis distorções da representatividade indireta!”

      A partir daquele momento, esse aforisma seria seu lema!

      ...

      A enfermeira derramou o antisséptico sobre a ferida cirúrgica no instante exato em que o pai do rapaz chegava ao corredor em companhia do médico plantonista. A Senhora Nascimento fez questão de apresentar a nova amiga. Nesse momento, do quarto vizinho àquele em que Pedro estava internado, saía uma garotinha serelepe, aparentando ter uns cinco anos de idade, correndo alegre em direção à respeitável senhora:

      - Esta é a Carmem, minha filha – Apresentou!


      Cabelos ruivos e cacheados, olhos verdes resplandecentes e uma aura de vivacidade indescritível... A menina era a pura visão de um anjo!

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Você já leu este conto? -> Dracena Estava Atrasada


Gilberto de Almeida
09/08/2013



quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Depois das Ruas - Capítulo 7 - Pesadelo

Se ainda não leu, veja os capítulos anteriores deste conto:

Capítulo I - Impacto de Uma Noite
VII - Pesadelo


      A luminosidade intensa parecia transpor as pálpebras cerradas de um Pedro Nascimento entorpecido pelos acontecimentos intensos que acabara de vivenciar. Sentia o impulso de abrir os olhos, apesar da claridade exagerada. Ao descerrá-los brevemente, no entanto, um foco de luz de alta potência, direcionado frontalmente para si, o fez contrair as pálpebras com força, fugindo do brilho insuportável!

      Alguém deve ter percebido essa reação porque, quase imediatamente fez-se ouvir uma voz irritada no recinto:

      - Acorda vagabundo!

      A voz enérgica, um hálito etílico e a autoridade violenta daquelas palavras injetaram uma sobrecarga de adrenalina na circulação do garoto que se viu, intempestivamente, despertado de um devaneio inexplicável para a infame realidade de um recinto prisional:

      - Está pensando que pode vandalizar o que é dos outros e sair na mamata, seu fedelho? Nada disso! Não na minha praia! Vagabundo nesta delegacia não tem vez! Me diz aí, ô imbecil, quem são os outros marginais? - E Pedro sentiu uma forte bofetada estalar-lhe o rosto enquanto tentava abrir os olhos, apesar da incidência do foco de luz ofuscante diretamente sobre suas pupilas dilatadas. A cadeira em que estava algemado balançou com a força brutal da pancada! Sentiu quando uma gota cálida de sangue escorria de seu supercílio direito!

      - Que dia é hoje? O que é isso? O que está acontecendo? - Perguntou o rapaz, atordoado, ainda sem atinar com a realidade e com a gravidade da situação.

      - Que dia é hoje? Tá pensando o quê, moleque? Quem faz as perguntas aqui sou eu! Mas vou te dar uma dica: você tá na delagacia - ou no inferno, se preferirr - seu vandalozinho desgraçado! E o que está acontecendo é que você está sozinho porque os teus camaradas fugiram e te deixaram pra trás pra apanhar no lugar deles! E pode acreditar que sou muito bom em descer o cacete em criminosozinho fdp! Ou você me fala quem são seus camaradas e onde é que eu vou encontrá-los, ou tu tá ferrado, pirralho!

      O novo golpe foi tão forte que derrubou o rapaz ao chão, junto com a cadeira à qual estava agrilhoado. Um impacto da parte lateral de sua cabeça diretamente sobre o solo provocou o primeiro desfalecimento do jovem impotente durante aquela angustiosa sessão que invadiu a madrugada do dia vinte e cinco para o dia vinte e seis de junho de dois mil e treze.

      Neste ponto, um pouco porque em nada me compraz detalhar os fatos dolorosos ocorridos na delegacia durante aquela madrugada, um pouco para poupar a sua sensibilidade à descrição de pormenores degradantes, deixarei por conta da sua imaginação, leitor, se assim o desejar, a sequência dos acontecimentos que se sucederam até um  momento um pouco menos desumano desta narrativa. Daremos então, para não correr o risco de nos aprofundarmos nesses confins sombrios da sordidez humana, um salto de aproximadamente quinze dias a partir daquela madrugada deprimente.

      Nessa data vamos encontrar nosso protagonista em estado comatoso, num leito da ala de neurologia de um grande hospital público da capital paulista, o corpo repleto de hematomas, com a cabeça circundada por ataduras e uma das pernas elevada por um dispositivo ortopédico de tração!  Dessa perna, também envolvida por compressas cirúrgicas, pronunciavam-se hastes metálicas unidas a vários dispositivos de fixação externos. Nosso personagem fora submetido a um procedimento ortopédico e a uma neurocirurgia devido a fratura craniana e hemorragia subdural. Após este último e delicado procedimento, permanecera inconsciente. Era dolorosa a visão que se tinha do adolescente vibrante de dias antes, nesse estado fragilizado!

      Outros desdobramentos graves, porém de menor interesse para nossa narrativa, também tiveram lugar nesse intervalo, entre eles, apenas para melhor situar o leitor, é conveniente observar que se deu uma sofrida movimentação dos pais de nosso protagonista, aflitos e desamparados, junto à justiça e a órgãos públicos indiferentes, com o objetivo de localizar o filho desaparecido. Depois de o localizarem, absolutamente inconformados com a enorme afronta sofrida pelo rapaz, os pais de Pedro, com os corações marcados pela dor e desprovidos de posição social e de dinheiro, não se consideravam em condições materiais ou emocionais de tomar as medidas imagináveis contra o poder público vigente, consumidos que estavam diante de seu delicado estado de saúde.

      Mas o salto em nossa história, nos leva a um momento específico, aproximadamente às nove horas da manhã do dia quatorze de julho de dois mil e treze quando, contrariando os prognósticos médicos imediatos e para surpresa de todos, diante de pequeno grupo familiar, constituído por seu pai, sua mãe e uma tia, Pedro, como se simplesmente despertasse de um sono, abriu totalmente os olhos e reclamou:

      - Tenho sede...

      O alvoroço foi geral! Até então, nos raros momentos em que, de seu estado de inconsciência, os acompanhantes o tinham ouvido murmurar o que quer que fosse, nada mais se tinha escutado se não delírios envolvendo paisagens do futuro, incluindo tanto paisagens belíssimas quanto cenas calamitosas. O garoto, em seu estado sonambúlico e inconsciente, balbuciara palavras ininteligíveis a respeito de tecnologias desconhecidas, tivera alucinações com sociedades avançadíssimas  e clamara insistentemente pela presença de uma figura luminosa, uma espécie de anjo, onipresente em seu conturbado estado mental.


      Mas, para a alegria dos presentes, agora, pela primeira vez, Pedro parecia lúcido... e tinha sede!

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Gilberto de Almeida
09/08/2013



quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Depois das Ruas - Capítulo 6 - Um Sonho dentro do Sonho

Se ainda não leu, veja os capítulos anteriores deste conto:

Capítulo I - Impacto de Uma Noite
VI - Um Sonho dentro do Sonho


      O recinto era um cômodo simples. As paredes haviam sido recobertas por um revestimento em relevo que lembrava pequenas almofadas dispostas lado a lado. Não havia janelas. Numa das paredes, um crucifixo prateado de uns vinte centímetros de altura era o único objeto decorativo. No chão estava uma peça de tapeçaria solitária e alguns acolchoados de aparência confortável. Uma luz violeta conferia ao ambiente certa aura de paz e mansidão. Junto à parede, abaixo do crucifixo, um pequeno móvel onde um instrumento eletrônico, parecido com um aparelho de som, somava-se à mobília escassa do ambiente.

      O Ancião sentou-se sobre um acolchoado, perto do aparelho e, com um gesto, convidou seu hóspede a fazer o mesmo:

      - Relaxe - Disse ele, enquanto ajustava alguma coisa no pequeno equipamento - Este é mais um singelo avanço tecnológico, inexistente no seu tempo! Como é sua primeira vez, talvez seja útil controlar a respiração...

      A seguir, o venerando, após adotar postura confortável, coluna absolutamente ereta, e orientar o jovem a fazer o mesmo, ensinou o jovem a sentir a própria pulsação e controlar seus movimentos inspiratórios e expiratórios, ao sabor do ritmo cardíaco:

      - Agora é preciso fechar os olhos e relaxar... – Convidou, finalmente o ancião. Depois  cerrou os próprios olhos e assim permaneceu em atitude serena por vários minutos. O silêncio era pleno.
     
      Pedro, confuso, não sabia exatamente como proceder. Movido, no entanto, quer pela curiosidade, quer pela influência do comando brando, porém irresistível, de seu interlocutor, decidiu embarcar naquele exercício de relaxamento.

      O jovem, a princípio com seus pensamentos inquietos, encontrou dificuldade para relaxar, mas a absoluta quietude do recinto, a atitude relaxamento, o pranaiama natural, aquela luminosidade suave e a presença tranquilizadora do ancião foram, lentamente, exercendo efeito sedativo sobre nosso personagem. Aos poucos, os pensamentos emaranhados foram dando lugar ao silêncio interior e a um estado de sonolência superficial... Devagar, a escuridão de seu panorama íntimo foi sendo insidiosamente preenchida por luminosidade acolhedora e indefinível. Pequenos torvelinhos de cores serelepes brotavam nos recantos de sua mente no horizonte limitado pelas pálpebras cerradas. De início, como imagens trêmulas e evanescentes, mas, pouco a pouco, assumindo feições de um campo tingido de tonalidades vivas e reconfortantes. Sua paisagem mental foi percorrendo lentamente o espectro luminoso, quando pareceu estacionar em acolhedores matizes de violeta. Passados alguns instantes nos quais Pedro quase adormecia à luz serena desse violeta interior, ouviu-se um rangido suave como se a porta do recinto fora aberta. Sob estímulo desse ruído, despertando repentinamente de seu estado de êxtase, Pedro abriu os olhos no momento exato em que uma luminosidade soberba e ofuscante, proveniente do ambiente externo, invadia o pequeno cômodo através da porta, agora entreaberta. Estranhamente, ao cerrar-se a porta, ao som do mesmo ranger suave que antes anunciara sua abertura, a brilhante claridade permaneceu no interior do recinto, ao invés de cessar completamente, como o jovem esperaria.

      Surpreso, mas ao mesmo tempo tomado de serenidade, Pedro viu essa claridade ofuscante, na forma de um vulto luminoso, mover-se pelo ambiente e estacionar entre ele próprio e o ancião. Devagar seus olhos iam-se acostumando com o fulgor resplandecente que parecia ocupar cada vez mais completamente o espaço daquele recinto. Devagar, o rapaz começou a distinguir uma silhueta humana no interior daquela expressão cintilante de cores cristalinas que, aos poucos, foi se firmando ante sua vista com impressionante nitidez! Agora distinguia a figura de uma mulher belíssima, de cabelos ruivos e cacheados esplendorosamente iluinados. Os olhos verdes carinhosos expressavam uma bondade inesgotável. Trajava um blusa cor de carmim e uma saia longa, muito alva, até os tornozelos. Usava calçados simples, também alvíssimos, aparentemente confeccionados de tecidoc... Era Carmem, a mulher da fotografia. A esposa do seu afetuoso anfitrião! Pedro estava extasiado... Impressionado com a figura luminosa e belíssima a sua frente e anestesiado por um torpor inexplicável. Impressionava-se com a visão, mas ao mesmo tempo aceitava aquela aparição angelical com a mesma tranquilidade da pessoa que, no ambiente onírico de um sonho, convive sem ressaltos com as criações surpreendentes da própria mente!

      Nesse estado de estarrecida passividade, nosso protagonista assistiu a figura sublime de mulher aproximar-se de si e contar-lhe impressionante história sem, no entanto, mover os lábios para dizer-lhe uma única palavra. Ao invés disso, o jovem viu-se transportado para o local exato onde os fatos significativos aconteciam, presenciando a história a desenrolar-se diante de seus olhos de maneira tão viva e realista quanto era viva e realista sua participação nos protestos da capital paulista no dia anterior. Numa transição minuciosa por demorados acontecimentos históricos, nosso personagem imergiu profundamente em fatos que, no ano de dois mil e setenta e três, eram  história, eram passado, mas, ao mesmo tempo constituíam uma perspectiva outrora inimaginável de seu próprio futuro. E assim, ano a ano, década a década, o estupefato adolescente participou de experiências das quais supostamente ainda participaria se esse sonho espetacular não o tivesse arrebatado de sua vida trivial no ano de dois mil e treze...

      Foi assim, vivenciando de corpo e sentindo na alma,  que Pedro Celso Nascimento teve conhecimento dos fatos aparentemente desconexos e absolutamente dolorosos responsáveis por dizimar dois terços dos homens e mulheres sobre a superfície do globo, a partir da terceira década do milênio. Epidemias, calamidades naturais, acidentes numerosíssimos de todos os tipos, a insanidade, tudo parecia ter escolhido essa época específica da história da humanidade para acontecer... As fibras do coração de nosso jovem idealista sangravam num sofrimento indizível diante de tantos acontecimentos penalizantes...

      Mas, aos poucos a paisagem daquela viagem alucinante foi-se transformando num cenário de regeneração e fraternidade. O panorama de múltiplas epidemias ia dando ensejo para o surgimento de almas abnegadas que entregavam seus corações aos enfermos assistindo-os do momento das primeiras mazelas até o leito da morte; o pós-vir das calamidades era o pretexto para os sobreviventes excederem sua própria capacidade de servir, estendendo-se as mãos para o trabalho de reconstrução, sob a luz pacificadora de um novo horizonte, adivinhado, no íntimo, pelas dedicadas criaturas; a cada acidente, onde as vítimas fatais eram recolhidas deste para outro mundo por mãos invisíveis e amorosas, restava aos vivos confortar seus vivos, fazendo desabrochar, no coração humano a florada caridosa de uma primavera de ventura; onde a loucura, o assassinato e a guerra frutificavam da insanidade, a colheita já não se fazia com rancor e ódio, mas com a sensatez e perdão que pareciam invadir a paisagem interior da personalidade humana em todos os continentes, no anseio fraternal de uma multidão de pessoas extenuadas pela violência...

      Pedro via, mas não compreendia. Sentira em seu próprio coração a dor de uma inumerável quantidade de mazelas, mortes e sofrimento que depois, aos poucos, foi cedendo espaço para o seu oposto, para a paz, para a fraternidade, para a regeneração de tudo aquilo que antes fora destruído... Mas nenhuma explicação. Qual o motivo de todos aqueles acontecimentos trágicos? O anjo amoroso a seu lado, uma espécie de guia silencioso, o tranquilizava com sua presença magnânima e benevolente, mas não lhe fornecia as explicações. Ao contrário, sua presença era como a de uma autoridade bondosa e sublime, diante da qual não se faz perguntas, diante da qual tudo se aceita como verdadeiro e absoluto, como se fora parte de um planejamento irretocável da divindade...

      E assim Pedro, levado a uma compreensão interrogativa, a uma aceitação tácita, mas inexorável, viajava rumo a um futuro cada vez mais distante. Era conduzido, passo a passo, acontecimento por acontecimento, até aquele exato instante do qual se retirara antes, no recinto das luzes violetas, dentro do apartamento de seu anfitrião. Nesse traslado pela ponte inebriante do tempo, um torpor irresistível foi transformando suas vívidas experiências num torvelinho de reminiscências cuja nitidez se perdia conforme avançava rumo ao presente... Rumo ao futuro... Pessoas se faziam vultos, paisagens se desfaziam em aquarelas fugidias, vozes sonoras se encolhiam em murmúrios imperceptíveis...


      Até que, do sonho, o adolescente, extasiado, parecia retornar à realidade anterior onde tudo o que percebia era uma luminosidade absolutamente intensa...

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Gilberto de Almeida
08/08/2013


terça-feira, 6 de agosto de 2013

Depois das Ruas - Capítulo 5 - Lembranças de um Dia no Futuro

Se ainda não leu, veja os capítulos anteriores deste conto:

Capítulo I - Impacto de Uma Noite
V - Lembranças de um Dia no Futuro

      Eram aproximadamente dezoito horas quando os dois retornaram ao apartamento.

      O que acontecera durante aquele dia não se comparava a nada já vivido anteriormente pelo rapaz. O estranho, o inusitado e o impossível o haviam acompanhado desde o amanhecer até aquele momento, quando os últimos raios de sol anunciavam o crepúsculo. Encontrava-se em um sonho instigante do qual não conseguia e não queria despertar. Conhecera, acompanhando um senhor simpático que se dizia ser o próprio adolescente, porém sessenta anos mais tarde, no futuro, um mundo muitíssimo mais feliz e mais evoluído, se comparado àquele com o qual estava acostumado. Tivera revelações impressionantes, responsáveis por multiplicar em seu espírito juvenil o mesmo impulso que víamos mover nosso personagem, horas antes, rumo a ideais sublimes de justiça, de paz e de igualdade perante o poder político de seu país. Esse clima de excitação mental envolvera-o por completo. Não tentava racionalizar o irracional! Aceitava-o, vivia-o hipnotizado, nesse dia absolutamente peculiar.

      Recolhidos novamente ao conforto do lar, enquanto o Pedro maduro retirou-se para um banho reconfortante, o Pedro adolescente, pensamentos em ritmo acelerado, rememorava obsessivamente os colóquios que mantivera com aquela expressão carinhosa do seu próprio Ego, sessenta anos envelhecido:

      "- Me explique esse sistema de votações! Como é que isso aconteceu?” - Perguntara o garoto nessa tarde instigante e cheia de revelações.

      - Você deve se recordar melhor que eu, meu jovem, a respeito da véspera do dia de sua chegada por aqui, em dois mil e treze: aconteciam manifestações pela democracia no país... Pois bem, algumas pessoas, entre elas você mesmo, não se conformavam com a idéia simplista de que substituir governantes ou tomar medidas pontuais de punição contra esse ou aquele político corrupto, ou mesmo outras medidas isoladas como reduzir a tarifa do transporte público ou vetar uma emenda contrária a princípios constitucionais, essas pessoas não acreditavam na possibilidade dessas pequenas ações virem a corrigir os problemas verdadeiros deste país. Havia pessoas convictas de que a mudança que deveria ocorrer era no sistema de representatividade política.

      O interessante nessa história é que a própria existência das manifestações espalhadas por todo país, organizadas através de redes sociais pela internet, pessoa a pessoa, sem a concorrência de lideranças instituídas, sem o atrelamento a partidos políticos, foi a chave fomentadora da idéia de que o sistema democrático podia e devia ser mudado. Questões como: o povo não poderia ser o próprio representante de suas vontades? Por qual motivo ainda precisaríamos de representantes políticos, se a multidão pudesse expressar o seus verdadeiros anseios através da internet com a velocidade de um raio? Qual a necessidade, honestamente falando, da existência de partidos políticos? Cada ser humano, numa comunidade moderna, não pode ser representante de si mesmo?

      Alguns intelectuais começaram  a reparar com maior atenção nas imperfeições do sistema legislativo vigente àquela época. Tornava-se cada dia mais patente que a vontade do povo era indireta e distorcidamente representada pelas câmaras municipais, pelas assembléias legislativas, pelo Senado e pelo próprio poder executivo. Esses intelectuais viam nesse sistema uma herança imperfeita da revolução francesa de 1887, embora histórica e considerada como enorme avanço democrático no século XVIII. Consideravam esse sistema como fruto da incapacidade tecnológica existente até então em produzir meios práticos para que a população espalhada em grande extensão territorial manifestasse prontamente sua vontade. Esses intelectuais alardearam aos quatro ventos a mudança da realidade: em dois mil e treze, cento e vinte e seis anos após a revolução francesa e em plena era da informática, se era possível organizar de um dia para outro uma manifestação de milhares de pessoas em um canto qualquer do país, também deveria ser possível obter a opinião dessas pessoas, através do voto direto, pela internet, a respeito de qualquer assunto de seu interesse. Apertar um botão ou, de qualquer maneira, dar seu voto por algum meio eletrônico estaria ao alcance de todos se houvesse decisão política nesse sentido. O principal aforisma defendido por esses entusiasmados pensadores era, enfim, o seguinte: - Não há mais nada capaz de justificar o voto indireto, sob qualquer ponto de vista! A tecnologia de hoje permite ao cidadão representar-se a si mesmo! Isso elimina as terríveis distorções da representatividade indireta!

      Como você viu, durante o dia de hoje, eu, cidadão comum, votei algumas matérias de meu interesse. Há poucos minutos você me viu votar contrariamente a uma viagem do 'Executivo Chefe' à Argentina usando recursos públicos, no próximo mês. Isso é nossa realidade do dia a dia no mundo de hoje. Não há mais os famigerados partidos políticos, que à sua época já eram considerados por muitos como redutos de apadrinhamento e corrupção; não há mais senadores, deputados, vereadores, funções tidas como ícones do desmando, do abuso de autoridade e da apropriação indevida do dinheiro público. Em vez disso, hoje temos os "Técnicos legislativos", uma função considerada ainda necessária para redigir os textos das normas e decisões necessárias de toda espécie. Há também os "Fiscais do Executivo", espécies de auditores independentes em tempo integral, encarregados de realizar parte de uma função outrora atribuída equivocadamente ao poder legislativo. Além deles, ainda temos administradores executivos regionais, tendo sido eliminada a antiga nomenclatura de "Presidente", "Governador" e "Prefeito" à qual você está acostumado.

      Hoje você me viu votar a permanência dos Executivos municipal, estadual e federal em seus cargos. Todos os meses fazemos isso, o que tem sido bastante salutar. Com isso, os executivos sentem-se, constantemente, digamos assim,  incentivados a agir de acordo com os anseios populares, porque se não o fizerem, sabem que serão substituídos."

      O menino refletia sobre essas palavras rememorando, ao mesmo tempo, os avanços da civilização dos quais fora testemunha nas últimas horas. Sem dúvida, o novo sistema estava funcionando! Fosse sonho ou não, a euforia causada pela plausibilidade de uma solução possível lhe adoçava a alma... Mas qual teria sido o custo e a dificuldade dessa transformação. Lembrava-se da imprecisão da resposta do velhinho quando lhe perguntara sobre isso:

      "- Nem tudo foram flores." - respondera seu amável cicerone. - "Idéias novas requerem mentes preparadas, terreno preparado e capacidade de convicção! Na época, todo tipo de contestação foi colocada em pauta: - o povo não sabe votar! - diziam os desconhecedores do sentido exato da palavra 'democracia'; - simplesmente não vai funcionar, diziam outros, completamente enganados, como você pode perceber de suas próprias observações no dia de hoje; - a internet não oferece segurança suficiente, atestavam tecnocratas imediatistas, evidentemente cegos aos enormes avanços tecnológicos a serem alcançados no futuro próximo; - não há como eliminar o poder legislativo, porque ele também exerce a fiscalização do executivo, alegavam outros, com certa razão, mas incapazes de ver as possibilidades futuras de cisão entre essas duas funções - hoje se sabe - inapropriadamente acumuladas pelo mesmo poder... Isso tudo, meu jovem, foram contestações... e apenas parte dos problemas rumo à trajetória rumo à realidade dos dias de hoje! O sistema de reavaliação mensal do desempenho dos executivos, por exemplo, no início foi altamente ineficaz: a população, revoltada com séculos de exploração e desmandos, simplesmente não permitia aos executivos - em sua maioria – a permanência em seus cargos por tempo suficiente para levar a cabo qualquer projeto administrativo de médio ou longo prazo. Houve crises institucionais seríssimas praticamente em todos os setores: na saúde, na educação, na segurança, no transporte... Mas depois as pessoas amadureceram. Tiveram de amadurecer. Aprenderam a ter um pouco mais de paciência e a usar o sistema de votação para impedir os excessos. Diria eu que ainda hoje estamos aprendendo e o sistema administrativo continua em evolução. Governantes honestos e bem intencionados surgiram em alguns municípios e tornaram-se modelo para administrações subsequentes. Um outro momento de angustiosa tensão antecedeu a época da reforma constitucional. Sim, porque foi necessária a modificação de cláusulas constitucionais que a cegueira de legisladores do passado em relação às possibilidades infinitas do futuro firmou como pétreas na constituição do país. E essa mudança, como você deve saber, constitui, por si só, uma revolução. Chegou a haver um posicionamento árduo por parte das forças armadas! Dias de muita ansiedade envolveram os ânimos naquele período. Porém,  posso dizer que tivemos, abençoadamente, o que se pode chamar de 'uma revolução branca', sem derramamento de sangue... ou quase..."

      Esse "ou quase..." utilizado pelo velhinho ao concluir sua exposição era, dentro do cenário luminoso a tocar-lhe as fibras, a chama escura reverberando penosamente no imo de sua alma. Havia questionado o ancião a respeito do significado daquela reticência, mas obtivera como resposta um doloroso "ah, meu filho, há coisas que peço a você a bondade de não fazer este velho sofrido rememorar...". Por isso sua voz se calara no momento, mas seu espírito continuava interrogando, sofrendo interiormente essa inquietação, preocupação que se acentuava ainda mais quando se lembrava de outra afirmação contundente do anfitrião: 

      "- A população brasileira hoje, meu filho, é de cerca de um terço das pessoas da sua época. Aí está, também, um dos motivos para você sentir que a cidade está mais vazia e mais tranquila em relação ao passado!"

      Mas, quando perguntara ao ancião qual a causa de tal diminuição do número de pessoas, ele fora evasivo, como se a memória dos fatos lhe fosse realmente dolorosa ou estivesse, propositadamente, ocultando algo. Estranhamente, no entanto, também soubera por intermédio de seu interlocutor que a população mundial, assim como acontecera com a do Brasil, também fora reduzida a cerca de um terço daquela de dois mil e treze. Isso o deixara absolutamente perturbado. Cenários de possíveis guerras e cataclismos invadiam-lhe impiedosamente o pensamento. No entanto, apesar da insistência ante o ancião, não conseguira extrair-lhe nenhuma informação adicional do que parecia ser um segredo inexpugnável.

      O menino foi subtraído de seus devaneios quando o ancião retornou à sala de visitas, refeito após o banho, com ótimo estado de ânimo.

      - Muito boa noite, meu amigo Pedro Celso - Disse o Ancião.
     
      O jovem, interrompido em meio a seus devaneios, retornou instintivamente, como se apenas continuasse em voz alta a linha de seus pensamentos:

      - Eu não compreendi porque a população mundial é tão menor que no meu tempo...

      Seu anfitrião fitou-o com ternura, mas os olhos denunciavam a mente acelerada, como se estivesse a um passo de tomar alguma decisão crucial. Manteve-se em silêncio por alguns minutos, após os quais seu rosto pareceu iluminar-se e, por fim, arrematou:

      - Venha, garoto! É hora de eu lhe mostrar uma coisa com a qual você jamais sonhou!


      Pedro arregalou dois olhos curiosíssimos que perguntavam sem palavras: - como? Ainda tem mais? - E acompanhou o Ancião rumo ao corredor. Um rangido suave se fez ouvir enquanto o anfitrião abria a segunda porta à esquerda.


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Gilberto de Almeida
07/08/2013




segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Depois das Ruas - Capítulo 4 - Segundo Despertar - As Revelações Continuam

Se ainda não leu, veja os capítulos anteriores deste conto:

Capítulo I - Impacto de Uma Noite
IV - Segundo Despertar - As Revelações Continuam

      Quando abriu os olhos, o garoto olhou apressadamente ao redor, procurando por um parente, uma enfermeira, ou alguém conhecido. Mas, para seu desencanto, aquele sonho ainda não terminara. Despertava pela segunda vez no mesmo sofá em que acordara havia mais ou menos uma hora. O velhinho estava sentado em uma cadeira bem a sua frente, aparentemente aguardando que despertasse, e esboçou um sorriso de satisfação:

      - Muito bem, meu jovem! Reconheço a dificuldade do momento pelo qual você está passando. Eu lhe fiz uma revelação – e ainda virão outras no dia de hoje – bem difícil de assimilar... Por isso mesmo acredito que está na hora de você se levantar, tomar um bom banho e aí nós dois vamos sair para um passeio ao ar livre. O sol, o ar fresco e o contato com outras pessoas e ambientes far-lhe-ão bem...

      Pedro, ainda um torporoso e anestesiado pela incapacidade de lidar com os acontecimentos, balbuciou titubeante:

      - Estou sonhando?

      - Não, menino, você não está sonhando... - Disse o ancião, com absoluta ternura e sinceridade, que transpareciam em seu olhar - Mas como, exatamente, você veio até mim, eu não sei explicar. Só posso lhe garantir que isso, seguramente, não é um sonho...

      Depois, subindo para um tom de voz mais vibrante a animado, emendou:

      - Vamos! É hora de dar uma volta. Uma caminhada pela rua vai ajudar a esclarecer tudo!

      Apontando para um corredor no final da sala, acrescentou:

      - Vá se lavar! No corredor há um banheiro. Primeira porta à esquerda. Não vá se confundir! Lá você vai encontrar toalhas limpinhas, uma escova de dentes sem uso e uma muda de roupa aguardando por você. Ontem à noite, quando você chegou, tive pouco tempo para providenciar roupas novas... Já não me lembrava que você viria, caso contrário teria feito isso com mais tempo! Sabe como é... A idade vem e a memória vai... Mas acho que as roupas devem servir. Se não servirem, terá que se contentar com elas por enquanto! Poderemos comprar outras, depois.

      O rapaz ainda era um repositório de interrogações... Agora havia roupas para ele e uma escova de dentes novinha no banheiro... Se não era um sonho, era uma alucinação muito estranha...

      Semi-hipnotizado pela insensatez dos acontecimentos e pela atitude decidida de seu anfitrião, o rapaz cambaleou até o banheiro. O ancião aproveitou para colocar uma bermuda e sandálias. Estava uma manhã ensolarada e cheia de energia. Não perderia o que o aguardava nesse dia por absolutamente nada!

      Cerca de trinta minutos depois, os dois saíam do elevador, no pátio do andar térreo, uma área agradável e ensolarada. O rapaz, após um banho relaxante e trajando roupas limpas e confortáveis que lhe couberam perfeitamente bem, embora de um gosto evidentemente diferente do seu, sentia-se mais leve. O ancião acompanhava-o sem pressa, vestindo suas bermudas claras e sandálias macias de tecido. O estranho reloginho que projetava imagens estava em seu punho esquerdo. Uma bengala o ajudava a caminhar no ambiente externo.

      - O que foi na perna? - Perguntou o rapaz, numa tentativa de quebrar o silêncio,  enquanto reparava com numa cicatriz de uns cinco ou dez centímetros de extensão pouco abaixo do joelho direito do seu anfitrião, sobre a face lateral da tíbia.

      - Ah! Isso! - apontou para a própria perna com a bengala - Um acidente! Eu tinha mais ou menos a sua idade quando aconteceu. Não gosto de lembrar-me de como aconteceu. O pouco de que me lembro, traz reminiscências bem desagradáveis. Prefiro não falar sobre isso, se você não se incomodar...

      - Desculpe... - acabrunhou-se o jovem, ao perceber que tocara num assunto cuja memória o velhinho preferia evitar - Não quis entrar num assunto delicado. Era só para puxar conversa...

      - Não, não há porque ficar constrangido, rapaz! O importante é que fui operado na ocasião e depois fiquei bem. De fato houve alguma dificuldade de consolidação do osso e de cicatrização, por isso manco até hoje. Mas, na verdade acho que essa bengala é mais uma muleta psicológica do que física... Sabe como é... Gato escaldado tem medo de água fria!

      O menino deu um sorriso sem compreender muito bem essa explicação, mas considerou-se suficientemente esclarecido para não insistir naquele assunto.

      Alguns minutos depois, caminhando e conversando amenamente sob a luz do dia ensolarado e ao sabor de agradável brisa matinal, já se notava um efeito tranquilizante sobre a inquietude do rapaz, como previra o ancião. Enquanto caminhava, sentia com jovial alegria, o frescor do vento a acariciar-lhe as faces e balançar-lhe os cabelos longos; encantava-se com a pulsação urbana da cidade, como se pela primeira vez caminhasse por ela; o ar parecia mais saudável, o céu, mais aconchegante; tinha a impressão de ver mais árvores e mais espaços ajardinados; as calçadas, mais largas, pareciam, agora, estranhamente macias. Notou um leve desnivelamento da parte central do passeio em relação às duas bordas laterais. Tanto à sua direita quanto à esquerda havia um entalhe no perfil do pavimento, assemelhando-se a uma espécie de guia. O asfalto também era aparentemente diferente, mais macio e, de alguma forma, parecia iluminado. Quando chegaram à primeira esquina, reparou à sua direita, num pilar onde se lia: "Rua Padre João Manuel". Logo abaixo viu alguns pontos em relevo que reconheceu ser alguma inscrição em Braile. No lado adjacente do pilar lia-se "Alameda Santos". Logo abaixo dessa indicação, mais informação em Braile. Agora conseguira se localizar. Mais uma quadra e estaria na Avenida Paulista, palco de sua aventura da noite anterior. Noite anterior? Esse pensamento o afastava de seus prazerosos devaneios. Já não era capaz de afirmar com segurança o que acontecera na noite anterior...

      - Para que servem essas bordas laterais nas calçadas? - Disse o jovem, quebrando o momentâneo silêncio.

      O velho pareceu não atinar com o objeto da pergunta do menino. Depois, olhando para baixo, percebeu:

      - Ah! Isto? - E bateu com as bengalas nas guias levemente salientes à sua direita e esquerda - Isso foi um projeto de lei de muitos anos atrás, não me lembro exatamente de quando... É para os cegos! Para poderem ter melhor referência ao caminhar pelas calçadas. Lembro-me de que fizeram grandes protestos nas ruas por todo o país. Também dessa época vem a obrigatoriedade da existência dos pilares com identificação dos nomes das ruas em Braile! Não sei se você reparou...

      O rapaz assentiu com a cabeça, admirado... - Muitas coisas boas, por aqui - Alegrou-se!

      Quando, alguns metros adiante, já caminhavam pela Avenida Paulista, ele estranhou sobremaneira a quietude do lugar. Muito pouco movimento para o "Centro Financeiro" do país - pensou - Muito menos gente pelas ruas do que costumava ver. Além disso, os veículos eram certamente diferentes do que jamais vira. As roupas das pessoas eram todas mais ou menos esquisitas, parecidas com as que o bom velhinho lhe dera para vestir. Devagar, conciliando em seu pensamento a estranheza de todo aquele conjunto de novidades, começava a aceitar mais convicta e pacificamente, em seu íntimo,  aquela ilusão absurda de passear pelas ruas de São Paulo sessenta anos no futuro.

      Assim, Pedro foi se deixando envolver por aquilo que parecia ser uma ilusão agradável... Enquanto acompanhava o ancião em seus afazeres matinais, notava uma cidade muito mais tranquila, uma paisagem urbana mais agradável, pessoas mais serenas e aparentemente mais felizes e, enfim, gente mais acolhedora e bem humorada em todos os lugares...

      O jovem também ficara impressionado com as novidades tecnológicas: a maioria das pessoas pagava suas compras através de mecanismos de leitura biométrica ou utilizavam um relógio de pulso semelhante ao do seu anfitrião para transferir valores nas transações comerciais; havia proporcionalmente muito mais veículos coletivos e menos individuais do que se lembrava; os veículos eram silenciosos, de aspecto futurista, e pareciam não eliminar fumaça. O seu paciente cicerone explicara-lhe que a gasolina, o álcool e outros combustíveis do gênero vinham paulatinamente sendo abandonados nas últimas décadas e, com isso, a qualidade do ar melhorara bastante...

      E assim prosseguiram, nesse "tour" que incluiu, até um pouco antes das treze horas, a visita a uma agência bancária, a uma farmácia e a um supermercado. Foi quando seu então já cansado guia convidou-o para fazer uma pausa para o almoço, que foi muitíssimo bem aceita pelo menino. Entraram num restaurante simpático, com mesas na calçada, toalhas com delicadas estampas floridas, protegidas por guarda-sóis. Um funcionário antigo da casa, de aparência bonachona, cumprimentou o conhecido cliente pelo nome:

      - Bom dia, seu Pedro. Mesa para dois?

      Foi apenas nesse momento que o adolescente percebeu que até então não se incomodara em perguntar o nome do seu dedicado anfitrião! Surpreendeu-se com a coincidência:

      - Então o senhor é Pedro, também? - Perguntou, enquanto eram acomodados em uma mesa agradável na calçada.

      - É, meu jovem, esse é meu nome. Aliás, é bom que estejamos sentados, porque o que tenho a lhe revelar agora há de lhe causar certo espanto!

      Seu Pedro fez um gesto para o garçom, solicitando que lhe desse alguns minutos a sós com o rapaz, ao que ele aquiesceu prontamente. Certificando-se de que o conhecido funcionário já estava a alguma distância e que poderia então conversar em particular com o garoto, o ancião puxou, do bolso traseiro da bermuda, sua carteira de documentos e dela retirou o que parecia ser uma cédula de identidade estampada numa espécie de plástico flexível e estendeu-a para o garoto:

      - Examine, rapaz. Mais uma vez, melhor do que eu lhe falar é você ver com seus próprios olhos!

      O rapaz estendeu a mão direita com curiosidade, segurou o documento e trouxe-o para perto de si. Fitou por um instante e, incontinente, soltou uma exclamação em alto brado:

      - Meu Deus!

      Clientes e funcionários dirigiram olhares arregalados para a mesa, curiosos sobre o motivo da exacerbada exclamação. Nosso personagem afoito, percebendo o inconveniente de sua intempestividade, aguardou que as pessoas ao redor retornassem o interesse para seus próprios assuntos e dirigiu-se em surdina para o ancião, que, sem alterar sua fisionomia, parecia absolutamente seguro da situação:

      - O que significa isso?


      E o rapaz colocou o documento de identidade do ancião sobre a toalha florida. Com indicador apontando para o nome que ali se lia. Mantinha os olhos arregalados e a expressão facial petrificada. Mas sem esperar resposta, tomou esbaforidamente entre as suas mãos a mão esquerda do ancião, examinando-a detidamente! A seguir ergueu a manga direita da blusa do venerando, inspecionando uma cicatriz transversal na altura da metade de seu úmero! Não podia ser! Olhou para o tornozelo esquerdo que estava exposto, uma vez que o velhinho vestia bermudas com sandálias... Não acreditava no que via! Por último fixou o olhar no supercílio direito de seu conviva enquanto levava a mão sobre o curativo no seu próprio supercílio... Também ali havia uma pequena cicatriz muito tênue, como as demais, sugerindo a lembrança de um ferimento muito antigo... O rapaz estava perplexo. Todas as cicatrizes coincidiam com as suas próprias, com exceção daquela logo abaixo do joelho direito do ancião. O jovem estava paralisado... - "Pedro Celso Nascimento" - Era o nome que se lia na cédula de identidade que ele havia depositado sobre a mesa e para a qual agora olhava fixamente, sem conseguir dizer uma palavra...


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Gilberto de Almeida
06/08/2013


Depois das Ruas - Capítulo 3 - Primeiras Perguntas e Respostas

Se ainda não leu, veja os capítulos anteriores deste conto:

Capítulo I - Impacto de Uma Noite


III - Primeiras Perguntas e Respostas

      - Que barulho foi esse? - Perguntou com vivacidade o garoto, vendo no ruído inesperado, proveniente da sala ao lado, a chance para iniciar nova conversação e interromper o desconfortável silêncio!

      - Você já terminou seu café? - Arguiu de volta o ancião, também tencionando agarrar aquela oportunidade.

      O rapaz assentiu com a cabeça, lançando ao velhinho um olhar ao mesmo tempo animado e interrogativo.

      - Então venha. Acompanhe-me até a sala. Você vai gostar de ver isso!

      Ambos se levantaram e o jovem acompanhou seu simpático anfitrião até a sala ao lado, aonde chegaram a tempo de ouvir um segundo "Bip", idêntico ao anterior, ser emitido por uma espécie de relógio de pulso existente sobre a mesma escrivaninha recostada à parede onde Pedro vira o porta-retratos com a figura expressiva da dama de cabelos ruivos e encaracolados.

      O senhor apoiou o relógio em um tipo de suporte, cerrou as cortinas escurecendo um pouco mais o ambiente, direcionou para a parede o que parecia ser uma minúscula lâmpada incrustada na lateral do visor do aparelho e apertou um botão.

      Para espanto do jovem, a partir do dispositivo foi projetada uma espécie de tela de computador em fundo azul claro, onde se lia mais ou menos o seguinte:

      "Lei Federal 41/2073. Votação aberta. Encerramento em 23:52:12. Resumo da lei. Texto Completo".

      Abaixo desse "menu" via-se um título e uma descrição resumida da tal lei. Na parte lateral e superior direita, quatro pequenos painéis contadores, com os títulos "votos favoráveis", "votos contrários", "brancos" e "nulos" tinham seus números rapidamente incrementados. Um quinto painel, cujo título era "abstenções" era o único cujos valores diminuíam. A tela encerrava-se, no rodapé, por uma coluna onde era exibida uma lista de assuntos ao lado de outra, com as respectivas datas de votação. Por último, no canto inferior direito, havia um pequeno relógio que, naquele instante, marcava oito horas e oito minutos.

      Assim que essa imagem foi projetada na parede a partir do dispositivo diminuto, o jovem deixou, eufórico, escapar um entusiasmado "Uau!!". No entanto, seu entusiasmo foi vencido por uma angustiosa expressão de indagação quando viu o velhinho posicionar o polegar no que reconheceu ser um leitor biométrico de digitais instalado na correia do estranho reloginho. A seguir uma mensagem apareceu na tela:

      "Obrigado por votar!" - E logo desapareceu.

      O jovem, agora assumindo atitude de desconfiança, viu assaltarem-lhe a memória as imagens da véspera, quando compartilhava com a multidão o sentimento de insatisfação em relação ao poder público e aos políticos de seu país!

      - O senhor é deputado? É Senador? - Perguntou, em atitude de aparente decepção...

      O atencioso anfitrião pareceu hesitar por um momento, mas, ato contínuo, abriu um sorriso significativo, como se tivesse reconhecido naquela pergunta algo de agradável que o próprio rapaz não conseguia identificar.

      - Deputado... Senador... Há quanto tempo... - Deixou escapar, pensativo. Mas, reposicionando seu pensamento no momento presente, concluiu - Não, meu jovem, não sou! Sou alguém como você. Apenas um cidadão.

      - Como assim? Eu vi o senhor votar uma lei! E era uma lei federal! Como pode votar uma lei federal sem ser deputado ou senador?

      - Ótimo! Perguntar é a maneira de obter esclarecimento! Muito bem! E eu lhe respondo que você me viu votar uma lei porque, de fato, eu fiz isso, ou, melhor dizendo, você me viu votar uma lei porque cidadãos fazem isso; participam do processo legislativo do seu país! Não é necessário ser deputado ou senador para isso, não é assim? - O velhinho lançou ao rapaz um olhar ao mesmo tempo compreensivo e provocativo...

      - Não senhor! Não é assim, não! Temos representantes para isso! Pessoas comuns não votam leis! - o rapaz estava indignado - Posso não ser um gênio, mas sei muito bem que cidadãos normais não fazem isso; somente membros do poder legislativo podem votar leis!

      O ancião parecia estar chegando onde queria com aquela conversa. Sem perder a serenidade, emendou:

      - De algum tempo para cá, meu jovem, as pessoas votam diretamente, não apenas suas leis, mas também votam atos administrativos e uma série de outras questões da vida cotidiana, que precisam ser decididas...

      - Como assim? De um tempo para cá? - interrompeu o menino, indignado - Que história é essa? Quer me dizer que no prazo de algumas horas de ontem à noite até agora foi criado um sistema de votação totalmente diferente, assim, do nada? E esse relógio doido que projeta uma página de "internet" na parede? Nunca vi um negócio desses antes!

      - Não, Pedro, não quero dizer que essas coisas aconteceram...

      - E essa agora! - Interrompeu o rapaz, na continuidade da sua incaracterística euforia - Como sabe meu nome? Eu não te falei! - instintivamente palpava os bolsos à procura dos próprios documentos. Imaginou a possibilidade de o velhote ter bisbilhotado suas coisas enquanto ele dormia. Mas constatou estar tudo em perfeita ordem. Ademais, em seu íntimo sentia que o velhinho não seria capaz de uma coisa dessas. Porém, assim mesmo, prosseguiu, indignado - Quer fazer o favor de me explicar o que está acontecendo por aqui?

      - Pedro Celso Nascimento! - Exclamou o bom senhor, interrompendo o discurso do garoto antes que se transformasse em histeria!

      - Ah! Não! Não é possível! - retrucou de imediato o menino - Agora você sabe meu nome e sobrenome? Você andou bisbilhotando meus documentos enquanto eu dormia e depois os colocou no lugar de novo! Só pode ser isso! - Agora ele começava a mudar de opinião sobre a retidão moral do anfitrião - Isso já é passar dos limites! Exijo saber quem é você, onde estou e o que estou fazendo aqui!

      Após um breve instante de reflexão, o anfitrião apontou a imagem que ainda continuava projetada na parede e concluiu, pensativo:

      - Creio que você não está fazendo as perguntas corretas, meu jovem... “Onde você está” não é bem uma questão relevante... Talvez, se você descobrir por si mesmo... Sei que conseguirá! E será melhor assim. Olhe a imagem na parede com atenção... Vai descobrir fatos interessantíssimos...

      Pedro estava um tanto aturdido, desconfiado e confuso, mas tinha um sentimento incompreensível que o impelia a confiar naquele velhinho. Tomado por essa "sui generis" simpatia, decidiu fazer sua averiguação. Dirigiu-se à projeção e procurou concentrar-se. Detidamente analisava a imagem na parede. Reviu o "menu" de opções no topo da "tela", os contadores laterais, ainda em contínuo processo de atualização, o resumo da lei que o intrigante anfitrião acabara de votar, os assuntos no rodapé e as datas nas quais entrariam em votação, o reloginho no canto inferior direito mostrando a hora atual...

      - Não vejo nada de mais!

      - Olhe com mais atenção, menino! Ou melhor, não olhe! Compreenda!

      O menino voltou-se de novo à projeção, ressabiado! O que deveria encontrar, afinal? Tinha um painel de votação diante de si. Ponto. O que mais deveria ver? Visivelmente contrariado, começou a prestar atenção nos títulos dos assuntos a serem votados, no rodapé. Num relance, viu temas como: "aprovação de viagem do 'Executivo Chefe'", "proposta de ampliação de usina de energia eólica no RN" e "aprovação de construção do Centro de Pesquisas Psicofísicas em MG", entre outros. Os temas eram estranhos, a maioria não eram leis, e sim aprovação de medidas administrativas, mas isso não lhe dizia praticamente nada. Bateu os olhos nas datas de votação... E estacou! Pedro estava perplexo!

      - Pera aí! - Exclamou! - Isso aqui é um "sete" ou é um "um"?

      - Ah... - Suspirou o velhinho, com satisfação - Você está começando a descobrir...

      O garoto fixou o olhar na imagem com inaudita atenção até perceber, com certeza absoluta, as diferenças de grafia entre os números "sete" e "um" no tipo de fonte utilizada naquela projeção. Não! Não havia dúvida. Aqueles números eram todos "setes". Mas qual o sentido disso? Qual o motivo de informar as pessoas, na data de hoje, sobre um assunto a ser votado no ano dois mil e setenta e três - se aquilo era um "sete", então o ano era dois mil e setenta e três! - Ou seja, qual o objetivo de informar as pessoas sobre um assunto que seria votado somente dali a sessenta anos? Que coisa mais maluca! Procurou minuciosamente por datas mais próximas. Com tantas reivindicações nas ruas, não haveria nenhum tema importante para ser votado na próxima semana, por exemplo? Procurou, mas não encontrou! As datas sucessivas começavam, a partir da mais próxima, em vinte e seis de junho de dois mil e setenta e três e iam até vinte e cinco de julho do mesmo ano... O Cérebro do rapaz já tão achacado por surpresas naquela manhã, começava a dar sinais de fadiga. Não conseguia raciocinar...

      - O que significa isso? - Perguntou, por fim, sem encontrar uma solução lógica para o quadro diante de si - Seja qual for esse sistema de votação, qual o sentido de exibir na tela assuntos que só entrarão em pauta daqui a sessenta anos?

      O ancião, mais uma vez, sorriu com alegria. O menino estava progredindo.

      - Não há nenhum assunto para ser votado daqui a sessenta anos, meu jovem. - E tirando uma espécie de caneta do bolso da camisa, apontou para a imagem na parede, onde surgiu imediatamente a figura de um cursor de “mouse” em forma de seta. Direcionou o cursor para o relógio no rodapé da projeção e uma janela suspensa apareceu sobre a imagem de fundo, com os dizeres:

      "Data atual: segunda-feira, 26 de junho de 2073"

      - Veja, meu rapaz! Não há nenhuma votação para daqui a sessenta anos. As votações agendadas começam a partir de hoje! - completou o anfitrião, com entusiasmo, como se, enfim, tivesse chegado exatamente onde queria com aquele jogo de revelações parciais, sucessivas e surpreendentes!


      O menino pareceu congelar. Estaria sonhando? Que coisa surrealista era aquela? Com o fervor mental característico das pessoas sensíveis ao vivenciarem intensa angústia íntima, Pedro vislumbrou, numa rápida sucessão de reminiscências, a série de acontecimentos estranhos experimentados por ele desde a véspera. Havia poucas horas, ou pelo menos assim parecia, ele estava numa manifestação política no maior centro urbano do país. De repente, um mal estar, uma sensação de pancada na cabeça, e despertara no apartamento de um senhor desconhecido, aparentemente simpático e hospitaleiro, que votava leis, mas dizia não ser um representante do poder legislativo; deparara-se com uma geringonça eletrônica absolutamente nova, sem precedentes na sua vida prática e, sem mais explicações, tinha avançado sessenta anos no tempo... Não fazia o menor sentido! Talvez estivesse mesmo sonhando... Sim, poderia ser um sonho ou um delírio. Sofrera uma pancada na cabeça, tivera um estranho mal estar! Talvez, nesse momento estivesse no leito de um hospital, com uma fratura no crânio causada pela pancada na região frontal - afinal sofria de "osteogenesis Imperfecta" e fraturas vinham sendo parte corriqueira de sua história de vida. Era isso! Nesse exato instante deveria estar em estado de coma e o que vivia agora era um delírio. Sim! Só poderia ser um delírio. Não deveria dar maior importância a isso! E, confundido pelo peso dessa avalanche de pensamentos, uma imprevista descarga de adrenalina fazia acelerar o ritmo cardíaco do rapaz. Sua pele ficou fria, pálida e sudorética. Uma sensação de vertigem fazia Pedro sentir-se arremessado num abismo. Sua vista começou a escurecer pela segunda vez nas últimas vinte e quatro horas... Ou seria nos últimos sessenta anos?

Gilberto de Almeida
05/08/2013