terça-feira, 19 de março de 2013

Dracena estava atrasada


Gilberto de Almeida - 19/03/2013

Quarta-Feira, seis horas e vinte minutos, a dois quilômetros da estação quinze.

Como na véspera e na antevéspera, novamente soava o despertador. Mas naquele dia Dracena não se levantou de pronto. Um torpor desproporcional tomou conta de suas fibras. As pernas muito doloridas... Talvez o trabalho até tarde na véspera... Não sabia explicar. Resolveu, como nunca o fazia, se dar o direito de descansar mais cinco minutos.

Torporosa, desligou o despertador. Torporosa, não reprogramou o horário de despertar.


Seis horas e quarenta e cinco minutos:

Não saberia dizer o que foi: se a claridade do dia, se o canto do sabiá. Mas algo a fez despertar novamente. Desta vez pulou da cama sobressaltada! Viu o horário; atropelou as paredes até o chuveiro!


Sete horas e dez minutos:

Dracena desceu correndo as escadas até a copa. Engoliu um copo de café! Não comeu pão. Sabia estar atrasada. Lembrou-se de colocar na carteira o dinheiro para o bilhete de trem. Decidiu pegar mais dez reais para eventualidades.

Sete horas e vinte e cinco minutos:

Dracena abriu o portão de casa, em frente a uma praça arborizada por velhos Ipês amarelos! Os infelizes estavam tomados por cupins, mas não perdiam sua majestade. Não lhes deu atenção! Estava atrasada demais para isso.

Havia caminhado cerca de cinquenta metros em passo acelerado, rumo à estação, quando escutou um estrondo! Assustada, virou-se, sem interromper o passo e  percebeu o galho de Ipê que acabara de cair sobre a lixeira da praça!

Houve um lapso, talvez milésimos de segundo!

Uma memória antiga a assaltou: quando passara por aquela mesma lixeira, meses antes, época em que ainda dirigia, viu um homem maltrapilho que a vasculhava. Já pelo retrovisor, enxergou o mendigo retirando da lixeira o que reconheceu ser um frasco plástico de “catchup”! O homem em seguida colocou o frasco alguns centímetros acima da boca aberta e sacudia-o na tentativa de fazer verter algumas derradeiras gotas!

- É a fome... Pensara na ocasião! Tristemente, pensara na fome! Não foi possível retornar e ajuda-lo, lembrou: ela estava de carro; não tinha como retornar! Com certeza aquela visão da miséria humana e, talvez o fato de não ter auxiliado o pobre mendigo, a marcara intimamente. Mas não teve novas recordações do episódio em nenhuma outra ocasião. Nunca mais! Agora, um fato abrupto a fizera recordar o acontecimento. Mas, com a mesma agilidade com que arrancara das profundezas do seu subconsciente essa memória antes por anos entorpecida, com a mesma rapidez ela a arquivou novamente! Estava atrasada! Não tinha tempo para reminiscências! Não importava quais fossem! Um galho de Ipê amarelo caíra sobre a lixeira. Ponto. Nada de se atrasar ainda mais por causa disso. Agora era acelerar o passo!

Sete horas e trinta e cinco minutos:

Dracena contornava a esquina da avenida que conduzia à ponte. Ao virar, estacou! A meia distância de onde estava e a ponte, um mendigo revirava sacos de lixo espalhados pela calçada...

- A fome... Pensou!

De novo a reminiscência! De novo a imagem do mendigo da praça! Duas vezes em poucos minutos, a mesma recordação!

- O que é isso, meu Deus?!

Quatro segundos depois

A jovem entrou numa espécie de transe! Continuou caminhando, mas em transe! Seu estômago revirava; sua alma também! Sentia-se tomada por uma comoção diferente, um sentimento de compaixão impelindo-a a ajudar aquele homem. Ele estava revolvendo o lixo: devia ter fome! Lembrou-se dos dez reais extras que havia colocado na carteira na última hora. Poderia dá-los! Mas ao mesmo tempo teve repulsa e medo! Era mulher, estava sozinha. Corria perigo! E se ele a assaltasse, ou a atacasse? Tinha a opção de disfarçar, de fingir que não o vira, de passar reto! Sim, essa era a alternativa sensata. Não haveria constrangimento, não correria o risco de ser atacada! Passaria a passos largos e rápidos, o mais longe possível daquele homem!

Mas algo a compungia!

- A fome...

Uma voz interna invadia seu pensamento e a inquietava:

- A fome...

Seu corpo estava trêmulo.

Sete horas e trinta e seis minutos:

Poucas passadas mais a separavam do indigente. Felizmente, ele parecia não a haver notado. Magérrimo, com ar alucinado, continuava a vasculhar aflito os sacos de lixo!

- A fome...

               Dracena desviou sua trajetória. Instintiva ou calculadamente, não o saberia dizer, mas passou a percorrer a calçada num curso distante possível do sujeito, próxima à beirada, perigosamente perto da avenida por onde os carros transitavam. Olhos fixos no horizonte. Não cruzaria olhares com o mendigo. Fingiria que não o viu.

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Terça-Feira, vinte horas e dezesseis minutos, a cerca de cinco quilômetros da estação quinze.

José Carlos saboreava um misto de amargor e doçura. Acabava de ser remunerado por seu serviço como catador de papel. Deixara todos os jornais, revistas, papéis e papelões que pudera recolher nas últimas vinte e duas horas no galpão de uma empresa privada e recebera dez reais pelo trabalho, o pagamento justo de acordo com o peso de sua entrega! Justo? Aí estava o amargor! Na hora de receber, o pagamento sempre parecia injusto!

Mas a injustiça da vida não era novidade para ele e sentia-se aliviado: agora poderia comprar um pacote de arroz. Fazia dois dias que não se alimentava. Esses dez reais eram muito bem vindos. Colocou-os no bolso da calça e tomou o rumo do mercado.

Caía uma fina garoa.

Vinte e uma horas e doze minutos.

Depois de quase uma hora caminhando, José Carlos sentou seu corpo desnutrido e úmido sobre um paralelepípedo solto providencialmente disposto num cando da calçada . O peso da inanição, do esforço físico ininterrupto, da insônia, da tortura mental por que passava dia após dia, enfim, o peso da sua dura luta pela sobrevivência parecia desabar agora, impávido, sobre seus ombros.

Por instantes, sentiu cada uma das fibras do seu corpo arderem como se estivessem em chamas... Dilaceradas, como se ele as houvesse estendido além da capacidade recomendável pelo bom senso! Como se prenunciassem o estertor derradeiro da morte! Somou-se uma sensação de vertigem a perturbar-lhe a consciência, insidiosa... A uma ladra sorrateira que vinha lhe roubar os sentidos! A vista escureceu, o chão pareceu faltar, veio o torpor...

Vinte e uma horas e dezoito minutos.

Calejado por uma vida sem facilidades, José Carlos sabia não lhe ter o direito desfalecer. Tinha de prosseguir. Tudo quanto desejava era chegar ao mercado, comprar um quilograma de arroz, voltar a seu recanto sob a ponte, cozinhá-lo, e comer! Era tudo de que precisava.

Reunindo forças de onde elas não mais existiam, levantou-se. Todo movimento era uma imposição de sofrimento, mas, determinado, ele voltou a caminhar!

Vinte e duas horas e quarenta e seis minutos.

Fazia quarenta e seis minutos que o mercado encerrara seu expediente. José Carlos encontrara a fachada deserta, as portas cerradas. A garoa caía sobre sua silhueta desconsolada,  com a aparente intenção de pacificar a noite. Era só aparência! Cada gota de chuva tinha o sabor da morte. O mundo de José Carlos desabava com a garoa. Mas retornar ao seu recanto e abrigar-se da chuva, agora era sua única opção.

Quarta-Feira, zero hora e quarenta minutos, na avenida, próximo à ponte que leva à estação quinze.

Absolutamente desanimado, exausto e faminto, tendo como único plano de sobrevivência a possibilidade de dormir algumas horas no abrigo da ponte, antes que o mercado abrisse as portas pela manhã, José Carlos vislumbrou pouco adiante de si uma remota esperança: 

- Sacos de lixo!

Ele estava acostumado, como catador de papéis na região, a vasculhar o lixo dos poucos edifícios existentes por ali. Sabia ser aquele, em particular, era o lixo de um escritório comercial. Mas a esperança morre por último! Alguém poderia ter se alimentado durante o dia e jogado os restos fora. Poderia haver alguma coisa...

Vasculhou exaustivamente o lixo, mas nada: muitos papéis, cartuchos vazios de tinta de impressora, um estilete quase sem ponta, envelopes, um estojo de couro sintético, alguns produtos de limpeza, mas nada de comida! Nada!

Sem mais esperanças, exausto, molhado e faminto, José Carlos sentou-se no chão, foi tomado de uma tristeza profunda e chorou... Chorou baixinho, um choro que somente ele e Deus eram capazes de ouvir! Sem forças, pedia por misericórdia!

Quarta-Feira, uma hora da madrugada.

Pouco antes de desfalecer por sobre o lixo que ele mesmo havia esparramado, José Carlos reparou no pequeno estojo de couro sintético jogado ao lado de um frasco de limpa-vidros. Nesse estojo guardou seus suados dez reais, encontrou um vão na parede externa do escritório próximo ao compartimento do registro de água e o escondeu.

Depois disso, perdeu os sentidos.

Quarta-Feira, cinco horas e cinquenta minutos.

José Carlos sentiu uma dor aguda na região lombar e tentou se levantar, ainda desorientado, enquanto se esquivava quase por acaso do segundo pontapé que seria desferido em seguida, sem piedade, com a ponta do coturno do oficial de trânsito:

- Acorda, vagabundo! Acorda e chispa daqui! Já não te falei que o "meu pedaço" não é lugar de vagabundo dormir? Acorda, vamos! Se manda daqui!

O pobre conhecia – e temia – aquela figura! Era um funcionário truculento da companhia de engenharia de tráfego, conhecido por ameaçar e abusar de quem não tinha condições de se defender.

Despertando de seu escasso sono, mas temendo entrar num terrível pesadelo, tão rapidamente quanto pôde, afastou-se do oficial! Aproveitaria e iria para perto da ponte. Dona Gertrudes, uma ambulante vendedora de guloseimas, tinha um ponto mais adiante. Ela sempre chegava cedo com seus pães, bolos e suas garrafas térmicas de café e de leite. Se ele soubesse pedir e ela estivesse de bom humor, poderia conseguir algo para comer ou beber.

No entanto, enquanto se dirigia para os lados onde Dona Gertrudes costumava montar sua quitanda improvisada, lembrou-se dos dez reais que deixara escondidos no vão da parede externa do escritório. Estremeceu! Seu dinheiro!

Mas como voltar até lá? E o oficial de trânsito? Não poderia ... Um pouco por medo, um pouco por lembrar-se de quão bem escondido deixara o seu dinheiro, tranquilizou-se... Seus dez reais estavam seguros! - disse a si mesmo.

Sete horas e vinte e cinco minutos

José Carlos retornava para o ponto onde deixara seu dinheiro, agora sentindo-se bem melhor! Dona Gertrudes havia percebido seu estado de absoluta necessidade e lhe dera um copo de café com leite quente, um pão com manteiga e um pedaço de bolo. Santa Dona Gertrudes! – pensou. Ainda existia gente boa neste mundo! Por alguns segundos, olhou para cima e agradeceu a Deus! Não era religioso, mas nessas horas, demonstrar um pouco de gratidão por aquele que lhe concedera, talvez, mais um dia de vida, era, no mínimo, prudente!

De longe, vasculhou com os olhos as proximidades, até se assegurar que o oficial truculento já havia partido para seu posto de trabalho, duas ruas acima, como de hábito. Tendo-se certificado, traçou seu plano simples: pegaria o dinheiro, iria ao mercado, compraria arroz e... comeria! Se alguém estivesse por perto teria notado, nesse instante, um brilho de diferente em seus olhos!

Sete horas e vinte e cinco minutos

Quando percebeu que o estojo com seus dez reais já não se encontrava no vão da parede onde o deixara José Carlos não pôde acreditar! Desesperou-se! Não podia ser! Ele tinha certeza de haver escondido o estojo naquele vão de parede! Teria sido ilusão? É fato que, quando ali chegara, na véspera, não estava gozando de sua mais plena consciência... Poderia ter imaginado o tal estojo? Sim, tinha de ser isso! Era imaginação! O dinheiro devia ter estado com ele o tempo todo! Tateou os bolsos da calça e de seu paletó esfarrapado. Nada! Tirou o paletó e procurou nos bolsos internos! Nada de novo!

Deu-se um instante para pensar. Queria raciocinar com sensatez, embora estivesse à beira da insanidade! O que poderia ter ocorrido? Onde estavam seus dez reais? Sim, ponderou, o dinheiro poderia ter caído no meio do lixo. Enquanto ele vasculhava o lixo, na noite anterior, de alguma forma o dinheiro caíra. Era a única e última alternativa! Passou a vasculhar o lixo novamente. Mas localizar uma nota de dez reais em meio àquela montanha de lixo de escritório, repleta de papéis, no estado de nervos no qual se encontrava, era uma tarefa ingrata. Dito e feito: nada do estojo; nada dos seus dez reais!

José Carlos parecia haver tomado uma boa surra! Postou-se catatônico!

Por um momento, a retrospectiva de seus últimos dias lhe passou pela memória: era uma história de fome, de trabalho, de dor, de desespero. Trabalhara vinte e duas horas, dormira na chuva, fora despertado por um soldado truculento como se fosse um vagabundo... E tudo por quê? Por míseros dez reais!

Por míseros dez reais...

Pelo seu arroz que, agora, Deus lhe tirava!

Onde estava aquele Deus misericordioso que as pessoas louvavam nas igrejas e a quem ele agradecera poucos minutos atrás por ter recebido um breve alento na sua vida miserável? Não, esse Deus não existia. Ou, se existia, não para ele! Era ilusão! A bondade divina era uma ilusão para os pobres! Nada lhe restava mais!

E prostrou-se, José Carlos, chorando mais uma vez, agora copiosamente, em desespero!

Sete horas e trinta e quatro minutos

Do fundo do desespero de sua alma José Carlos recuperou uma lembrança. Parecia que um bom espírito o inspirara. Surgiu-lhe à mente a imagem de um estilete. Aí estava a solução para o dilema de sua existência desprovida de sentido: ele se lembrava de ter visto um estilete entre os objetos, em meio ao lixo, na madrugada anterior! Esse bendito estilete seria o instrumento divino destinado a livrá-lo do infortúnio da existência! Essa era a única decisão: para que viver? Qual a finalidade desse tumulto, se no sono da morte poderia, finalmente, descansar?

Trinta segundo depois

José Carlos não era um homem de muito pensar; era um homem de fazer! Decisão tomada, pôs-se a vasculhar os sacos de lixo novamente: não mais atrás de comida; não mais atrás do seu dinheiro.

Agora ele procurava um estilete redentor!

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Sete horas e trinta e sete minutos.

- Moço, toma! É pro senhor!

Mas o que era aquilo?

José Carlos se virou e percebeu a mão estendida que lhe oferecia uma nota de dez reais!

Em uma fração de segundo, a volúpia da qual era tomado se esvaneceu e deu lugar a um entorpecimento sereno. Aos poucos viu uma tímida figura feminina tomar o lugar de seus devaneios suicidas...

- Um anjo... - Pensou! Só poderia ser um anjo!

Dracena insistiu:

- Pega moço, o senhor não está com fome? É pro senhor!

Passou-se um instante... Parecia uma eternidade, na qual ele fitou aquele enviado divino que vinha lhe restituir a possibilidade de viver. Sentiu-se humilhado, mas profundamente agradecido, diante daquele Deus que amaldiçoara havia pouco.

José Carlos pegou os dez reais, enquanto segurava as mãos da moça numa postura de agradecimento. Assim, pela terceira vez, desde a madrugada, ele chorou.


Sete horas e quarenta e cinco minutos.

Enquanto atravessava a ponte, Dracena se sentia estranha. Nunca havia se sentido  desse modo antes. Parecia ter feito algo importante. Dera dez reais a um mendigo, é fato, mas não conseguia compreender por que se sentia daquela maneira. Um arrepio lhe percorreu a espinha!


4 comentários:

  1. Maravilhoso! Parabéns!
    Estou emocionadissima!

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  2. Cris, obrigado pelo comentário! Que bom que o conto te tocou!

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  3. Nossa! Quanta sensibilidade meu amigo! Não tenho palavras para expressar o quanto me fez bem ler esse seu primeiro conto. Um conto que nos faz refletir sobre nossos valores, diante das loucuras do dia-a-dia na corrida contra o tempo. Parabéns!!!

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    1. Obrigado, Gerlane. A intenção do conto é exatamente essa: levar à reflexão. Grande abraço.

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