I - Impacto de uma noite
Eram
vinte e cinco de junho de dois mil e treze. Aproximadamente dezoito horas. A Avenida
Paulista, centro financeiro da capital paulistana, mas, naquele instante,
também um centro político nacional, fervilhava de gente! Os manifestantes
tomavam o asfalto no resplandecer de um movimento democrático que as gerações
futuras jamais esqueceriam! Fosse de patrióticas caras-pintadas de verde e
amarelo, fosse de orgulhosas caras-lavadas, uma multidão de pessoas coloria a
avenida exibindo cartazes que traduziam todo tipo de insatisfação:
-
"Fora com o presidente do Senado", dizia um cartaz; "Abaixo o
fascismo disfarçado!", clamava outro; "Contra a emenda inconstitucional",
advertia um terceiro; "Abaixo a presidente!", pedia mais um. Havia
cartazes para todos os gostos ou tipos de insatisfação: alertava-se para o
sucateamento da saúde pública e os altos custos dos planos de saúde privada,
para os salários escorchantes dos professores, a cara de pau e a petulância de
deputados e senadores, a precariedade e insuficiência do transporte municipal,
a insegurança nas cidades, o preço dos alimentos, a falta de controle da
inflação, os impostos aviltantes, a legislação em causa própria praticada pelo
Congresso Nacional, a corrupção desenfreada, enfim, todo tipo de clamor
legítimo e significativo ecoava e encontrava guarida entre os edifícios da
capital paulista. Havia até a declaração de anseios mais provincianos ou bem
humorados por parte daqueles que, insatisfeitos com a vida de um modo geral,
aproveitavam a oportunidade para exercer um mínimo que fosse de liberdade
civil: aqui, uma senhora protestava contra o aumento do preço da ração de seu
cãozinho de estimação; acolá, um mendigo maltrapilho, convocava os políticos
para as ruas, num cartaz criativo de, no mínimo, triplo sentido; mais adiante
uma criança reclamava por mais sorvete! Entre os cartazes bem humorados, havia
um que pedia a importação de médicos bonitões do exterior, e outro, um tanto
quanto dadaísta, que exigia a revogação imediata da lei da gravidade, sob pena
de queda da presidente!
Nesse
ambiente de catarse coletiva que misturava tensões íntimas e festividade, vamos
encontrar um rapaz de olhos vivos, azulados e expressivos, cuja fisionomia
transparecia energia e vitalidade. Esse rapaz de pouco mais de quinze anos
completos desfilava a passos largos por entre as pessoas, abrigando no peito um
sentimento de profunda alegria. Portador de "Osteogenesis Imperfecta"
tipo I, uma síndrome que, embora de grau leve, lhe fragilizava os ossos e
provocava fraturas frequentes, esse jovem que ora mergulhava na avenida, tomado
de ânimo, sempre vivera cercado de cuidados e restrições que o impediam de
desfrutar das mais prazerosas atividades ao ar livre. Seu corpo talhado de
cicatrizes testemunhava o passado de sofrimento. Uma cicatriz puntiforme no
punho esquerdo, por onde se instalara um fio cirúrgico no interior do osso do
antebraço, após uma fratura, outra cicatriz transversal, na altura de metade do
úmero direito e mais uma na altura do tornozelo esquerdo eram os troféus que
ostentava em memória a suas vitórias passadas sobre as agruras de sua doença.
Agora, num momento esplendoroso de sua vida, sentia-se genuinamente feliz com a
possibilidade de desfilar livremente. Além de sentir-se, mais que nunca, um
vencedor na sua luta particular para sair de um mundo de constantes cuidados e limitações
para vibrar ativamente ao ar livre, tinha a sensação vibrante e precognitiva de
estar vivendo um momento de importância histórica! Nos últimos dias vinha sendo
atraído para esse movimento como o ferro, pelo metal imantado! Ainda pulsavam
em suas veias os ecos instigantes da conversa acalorada que tivera há dois ou
três dias com um parente advogado que viera do interior. O parente, valendo-se
de seus conhecimentos de direito constitucional, lhe mostrara como o sistema de
governo brasileiro era um dos mais evoluídos do mundo, onde a independência dos
poderes era sustentada por um sistema legislativo de pesos e contrapesos e que
a democracia e a representatividade do povo nesse governo eram asseguradas por
eleições diretas até mesmo para a presidência da república. O jovem, por sua
vez, não se conformara com o fato de essa "democracia representativa e
evoluída" produzir resultados tão distantes dos anseios populares! Para
ele algo estava errado nesse sistema! Não era justo que o povo ignorante,
iludido pela propaganda político-partidária milionária, elegesse representantes
que depois tivessem de ser, inapelavelmente, seus algozes implacáveis durante
quatro anos! Mas, diferentemente do que percebera a respeito de tantos de seus
amigos, o que movia o impetuoso coração adolescente de nosso protagonista, não
era o clamor pela substituição de parlamentares e governantes; seu pensamento
era outro: - quem asseguraria que os próximos representantes a assumir as
cadeiras vazias não cometeriam os mesmos desmandos, num sistema político esplendoroso
nos códigos legislativos, mas que demonstrara ser incapaz de autocontrole na
vida prática? Algo havia de errado com esse sistema de representação
pouquíssimo representativo! E era isso que lhe tensionava as fibras do coração
e tangia sua alma num ímpeto irrefreável por mudanças...
Pedro
- esse era seu nome - sentia o apelo da transformação! E pressentia que o
momento dessa transformação havia chegado!
E é
assim que, carregando no íntimo, inúmeras dúvidas e inquietações, muito embora
a imagem desse jovem fosse a de pura energia e vitalidade, com sua imagem
juvenil e os longos cabelos castanhos atiçados pelo vento, aquele que pudesse
perscrutar sua alma através da janela aberta de seus olhos expressivos, notaria
o espinho árido da angústia a incomodar-lhe a paz! Angústia latente, percebida
pelo próprio adolescente como se fosse tão somente a sensação de desconforto de
sua alma irrequieta a clamar silenciosamente por justiça e transformação...
Porém,
talvez não fosse apenas isso. Talvez Pedro, jovem de espírito resplandecente e
sensitivo, estivesse captando, sem atinar, tensões ocultas que espreitavam o
próprio ambiente de revolta e insatisfação naquele período turbulento... Talvez
estivesse captando influências amargas e opressoras que fugiam à sua capacidade
de compreensão...
Mas
retornemos ao panorama da avenida onde Pedro se encontrava imerso na multidão
das ruas, absorvido pelo movimento que, como ele próprio, ao mesmo tempo em que
encantava pela alegria e festividade, também se achava envolvido num turbilhão
invisível de pensamentos ansiosos e contraditórios...
Nessa
situação é que o entusiástico protagonista desta história foi subitamente
tomado por de uma sensação de mal estar. De início, sentiu um calafrio
indefinível a percorrer-lhe a espinha. Depois, todos os pelos do corpo ficaram
arrepiados. Em seguida um estranho desequilíbrio, turvação da visão e náuseas o
fizeram curvar-se sobre o próprio tronco enquanto caminhava cambaleante pela
multidão. Temeu perder os sentidos por ali mesmo. Isso seria um desastre. Ser
pisoteado pela multidão eufórica, sendo portador da síndrome que lhe
fragilizava os ossos seria retroceder a outro período de restrição ao leito e
cuidados ortopédicos, como tantos pelos quais já passara antes!
Coincidência ou não, no instante em que nosso personagem iniciava sua
inexplicada sintomatologia, um contingente de dez ou quinze homens encapuzados
passava a meia quadra de distância, bradando palavras de descontentamento, e
caminhava em direção a determinado ponto, aonde metros adiante, os destinos
desses homens e de nosso jovem amigo cambaleante iriam se encontrar. Em
instantes esse grupo iniciou uma ação de depredação contra certa loja de
departamentos, enquanto Pedro, semiconsciente, se aproximava do mesmo lugar.
Foi
numa fração de segundos - num átomo de fração de segundos, talvez! - que se
sucedeu o fato que desencadearia uma série de acontecimentos impressionantes.
Pedro estava a poucos metros daquele grupo que vandalizava o estabelecimento
alheio. Ou estava já no meio desse grupo de pessoas ensandecidas? Sua
consciência fragilizada não permitia discernir... Já não via homens encapuzados
cometendo atos de vandalismo; seus olhos entorpecidos enxergavam, agora, vultos
tênues e quase inanimados, de seres humanos que se ocupavam de modo semiconsciente
dum ato de depredação, enquanto criaturas de aspecto monstruoso os induziam
como se foram marionetes. A cena se envolvia em emanações vaporosas de cores
abomináveis e exalava uma tensão psíquica carregada de ódio e insanidade que
para os quinze anos de idade de nosso personagem chegavam às raias de uma
alucinação insuportável.
Pedro
estendeu a mão direita em direção às criaturas, numa súplica quase inaudível...
- Não...
Chegou
a entrever o que parecia ser um bastão... Depois um som surdo. A sensação de um
baque na região frontal. Ou seria esse estado hipnótico de torpor que enganava
seus sentidos?!
Foi
assim que ali, na calçada do centro financeiro mais agitado do país e, naquele
instante, convertido também em centro político nacional, Pedro desfaleceu!
Gilberto de Almeida
02/08/2013
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Próximo Capítulo -> Capítulo II - Despertar
Gilberto de Almeida
02/08/2013
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