terça-feira, 23 de abril de 2019

Infecção

No quarto de número 119, onde acabara de ser admitido o menino Eduardo, de onze anos, travava-se o seguinte diálogo:

- Dona Clotilde, nós não podemos mais adiar...

Era tudo que D. Clotilde não queria ouvir. No íntimo ela já sabia, mas a perspectiva, colocada assim abruptamente pelo Dr. Clóvis, era angustiante demais para que ela a aceitasse com serenidade. Sua inquietude tornou-se aparente. Aprumou-se na cadeira, o olhar tornou-se suplicante. Ofegava.

- Doutor, o senhor tem certeza? Não podemos aguardar mais um pouco?  Não há mais nada que possamos tentar?

O médico, muito experiente nesse tipo de situação, compreendia a aflição íntima pela qual deveria estar passando a mãe do pequeno Eduardo. Desejaria não ter que tomar aquela medida extrema, mas as circunstâncias exigiam providências inadiáveis.

- Como a senhora não ignora, eu tenho uma razoável experiência com casos como esse. Nós já tentamos o que foi possível antes, a senhora é testemunha. O problema é que a infecção está se alastrando. Se esperarmos um pouco mais, com certeza ela se disseminará. Olhe a mãozinha do garoto. Ali é que está o foco. Se não fizermos a amputação com a máxima urgência, a infecção só irá se alastrar, cada vez mais.

- Mas doutor, e se continuarmos com os remédios? Será que não é só questão de insistir um pouco mais?

- Dona Clotilde, quando o problema não se resolve com o tratamento químico, continuar com a medicação não adiantará nada. Há casos em que só existe esperança se a fonte de infecção é eliminada. Na minha opinião, o caso do seu filho é um desses.

Dr. Clóvis aguardou respeitosamente um instante de silêncio em que D. Clotilde parecia absorta em seus pesares.

- Doutor, eu não vou suportar! Como é que ele vai viver depois? No dia que o senhor conversou com ele sobre essa possibilidade, o menino entrou em desespero! E eu, como mãe, como é que fico? Não vou suportar vê-lo sofrer tanto...

- Dona Clotilde, eu sei que, no começo é triste, é doloroso e pode parecer realmente insuportável. Mas, veja: o procedimento será realizado no hospital, com o menino internado. Há toda uma equipe de apoio envolvida. Temos psicólogos e terapeutas ocupacionais que irão atendê-lo e propor muitas atividades que poderão trazer alegria de novo à vida do garoto... Acredite em mim. Ele não será o primeiro e nem será o último. E todos superam. A senhora vai ver!

- Doutor, o senhor fala assim porque não é seu filho! Eu não sei se aguento...

- Dona Clotilde, vamos analisar os fatos com clareza. Os sinais de que a infecção está se disseminando são claros. A intervenção, neste ponto é indiscutível e urgente! Na verdade, eu pedi que a senhora comparecesse aqui com o menino na data de hoje, porque minha intenção é realizar o procedimento sem mais demora. O garoto já dá sinais de comprometimento cerebral, não está raciocinando corretamente. Olhe para a expressão dele. Estamos aqui conversando e o menino está alheio, em outro mundo!

Como a mãe permanecesse calada, o médico continuou:

- Eu examinei o menino na sala de pronto-atendimento, quando ele chegou. Seu pulso estava fraco, a pele, fria e, o pior, ele não respondia mais a estímulos. A senhora pode comprovar por si mesma. Pode tentar falar com ele, mexer nele. Ele está completamente não responsivo. Todos esses sinais não são nada bons! Se a senhora não autorizar o procedimento imediatamente, as consequências podem ser muito, muito graves...

D. Clotilde, não suportou. Chorava copiosamente. 

- Dona Madalena, traga um copo de água com açúcar para a mãe do Eduardo.

Instantes depois, ainda não totalmente recuperada da crise emocional, finalmente, D. Clotilde se manifestou:

- Onde é que eu assino, Doutor?

...

Em cerca de 45 minutos o menino estava na sala de operações.

No início, as coisas não foram tão simples quanto o Dr. Clóvis imaginava. Na sala onde seria realizado o procedimento, o garoto, repentinamente, saiu da irreatividade em que se encontrava e tornou-se agressivo. Não aceitava o procedimento de forma alguma. Rebelava-se. Debatia-se. Precisou ser sedado.

Passado esse contratempo, no entanto, tudo mais correu conforme planejado. Com o paciente sob profunda sedação e absolutamente relaxado, foi possível remover o foco da infecção num procedimento habitual, sem intercorrências.

...

Quando retornaram ao quarto 119, com o menino adormecido, a mãe aguardava apreensiva. O menino tinha as duas mãos enfaixadas.

- Dona Clotilde, a operação foi um sucesso! - E atirou, sorridente, sobre a mesa, o equipamento. - O enfaixamento nas duas mãos é por precaução. Não queremos que ele coloque tudo a perder quando voltar a si. Removido o foco da infecção - que a senhora bem pode ver sobre a mesa - e com o tratamento e o acompanhamento profissional adequado, estimamos que os sintomas infecciosos diminuam gradativamente até que ele esteja perfeitamente normal. O processo de reabilitação começa assim que ele demonstrar sinais de raciocínio. Temos crianças, em nossa instituição, que inclusive aprenderam a praticar esportes, jogar jogos de tabuleiro e - mais impressionante! - conseguem entreter-se em longas e divertidas conversas face a face com os outros internos e com os próprios parentes, que vêm visitá-los. Ele deverá ficar aqui por cerca de 3 meses e a senhora, bem sabe, pode visitá-lo, mas dentro das regras da casa.

- O Sr. quer dizer que...

- Exatamente! Celulares são proibidos! Leve este que conseguimos tirar das mãos do garoto e, de preferência, dê um fim nele. Pedimos apenas que, após a alta, a senhora siga rigorosamente nossas instruções para evitar que a doença retorne!

A mãe olhou, melancólica, para o telefone celular em cima da mesa. Lembrava-se dos olhos faiscantes do menino, quando o recebera de presente, aos oito anos de idade.

Gilberto de Almeida
22/04/2019

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Para a construção desta narrativa, nenhuma parte do corpo de nenhuma criança foi amputada. O procedimento realizado pelo Doutor Clóvis constitui-se única e exclusivamente na retirada do aparelho celular das mãos do menino Eduardo.

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A "Intoxicação Digital" vem sendo considerada um problema de saúde mental pela psiquiatria. O uso de telefone celulares de forma doentia pode ser classificado em "uso abusivo", quando atividades online são priorizadas em detrimento das offline; e "uso abusivo dependente", quando o virtual atrapalha o real e há perda de controle. No Brasil, os casos de abuso digital encontram amparo no "Grupo de Dependência Tecnológica do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo" e no "Instituto DELETE", primeiro núcleo brasileiro, ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro, especializado em "desintoxicação digital".

"Jovens e crianças são mais vulneráveis, diz Cristiano Nabuco de Abreu *, porque só atingem a maturação total do cérebro a partir dos 21 anos e, com isso, demoram mais a desenvolver funções como o "freio comportamental" - por meio do qual seria possível evitar situações de risco ou atos por impulso.

Uma das preocupações dos especialistas é o acesso precoce aos gadgets. "Muitos pais entregam o celular ou o tablet ao filho, usam os dispositivos como babá eletrônica, e acham bonito. Mas quanto mais precoce esse contato, mais chances de atraso no desenvolvimento da criança".

O caso mais chocante que Nabuco atendeu foi o de uma mãe descrevendo que o filho não almoçava e não dormia, por exemplo, sem estar com o celular. "O problema maior era quando eles iam ao shopping, o menino largava a mão dela e corria para balconistas nas lojas para pedir colo e então acessar o teclado dos computadores que ali estavam. Sabe quantos anos ele tinha? 2 anos e 4 meses".

A dependência mais comum entre os meninos é o uso de jogos eletrônicos. Nas meninas, principalmente adolescentes, a dependência de redes sociais é mais comum.

Em São Paulo e no Rio de Janeiro há atendimento gratuito para a população, no Hospital das Clínicas da USP e no Instituto Delete.

"O grande objetivo não é fazer com que as pessoas se livrem da tecnologia. O que a gente quer é que elas retomem o controle desse uso", diz Nabuco, do Hospital das Clínicas.

Oito em cada dez pacientes, segundo ele, chegam ao final do tratamento sem sintomas. Os demais, muitas vezes reiniciam a terapia.

O tratamento envolve reuniões em grupo para conversas com psicólogos e psiquiatras e, se for preciso, o uso de medicamentos para combater transtornos associados à dependência.

No Instituto Delete, o método usado envolve desde a identificação das raízes do problema até a adoção de técnicas de respiração e "ressensibilização". "O foco não é proibir o uso, mas criar estratégias para a pessoa ter prazer em atividades na vida real", complementa Eduardo Guedes. **

* PHD em psicologia e coordenador do Grupo de Dependência Tecnológica do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP)

** pesquisador e membro do Instituto Delete.



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