quarta-feira, 23 de dezembro de 2015
O presente de Ana Clara - Um conto de natal
O mundo de Ana Clara, para quem pudesse penetrar os labirintos de seus pensamentos, era um suceder de memórias que a transportavam para outros tempos. Quem a via ali, sentada no sofá da sala, muda e solitária, enquanto as outras crianças se espalhavam em irreverente algazarra pela sala maior, não poderia ter noção do que se passava no universo íntimo daquela pequena rolinha que parecia caída de um ninho existente em outra dimensão.
O pensamento de Ana Clara vagava pelos natais passados, quando a mãe ainda vivia neste plano de existência. Não tinha lembranças do pai, nem muitas informações sobre ele. Essas reminiscências, a menina parecia guardar com ternura infinita, a sete chaves, no templo sagrado de seu coração.
Todas as lembranças de natal, que não eram muitas na juventude de seus nove anos, vinham-lhe à mente, de certo modo, como reedições do mesmo quadro de simplicidade e doçura. Em companhia da mãe, na véspera do aniversário de Jesus, dirigiam-se, com um grupo de pessoas, a certa rua da cidade, onde ela cooperava até alta madrugada com aquela gente tão simpática que servia sopa quente aos pobres e aos necessitados. Quando aparecia uma criança (e apareciam muitas!), sempre tinham uma pequena lembrancinha, embrulhada lindamente, para presentear-lhe. A cada sopa e a cada lembrancinha entregue, as pessoas boas daquele grupo faziam questão de dizer:
- Esta sopa e esta lembrancinha são presentes do nosso amigo Jesus!
Ana Clara lembrava nitidamente daqueles rostinhos, alguns de crianças da sua mesma idade, outros um pouco mais velhos ou mais novos, porém, a maioria, com uma aparência sofrida, triste! A pobreza era notável pelas vestes e, frequentemente, por um não sei quê no aspecto de sofrimento de cada uma... Algumas, às vezes, pareciam com ela mesma quando ficava doente. Mas quando recebiam um prato de sopa, um presentinho, um carinho daquelas pessoas que chamavam a si mesmas de "voluntárias", a menina parecia ver uma alegria escondida brotar de dentro e iluminar seus olhares ensombrecidos pela tristeza da vida!
Como era bom esse amigo Jesus, que trazia luz à escuridão da noite interior!
Mas logo, logo, Ana Clara deixava de lado a tarefa de servir sopa e se entretinha com alguma brincadeira. Ou começava a conversar com aquelas crianças que tanto comoviam seu coração infantil.
Madrugada adentro estavam ela e a mãezinha voltando ao lar. Após o trabalho gratificante e as aventuras caridosas da noite, esse era o momento de íntimo contentamento. Quando chegavam à casa encontravam a árvore de natal, que ambas haviam enfeitado modestamente. À árvore se juntava uma das lembrancinhas, que a mãe sempre trazia da atividade noturna. O seu, como o das outras crianças, era um presente entregue por aquele Jesus carinhoso e amado! Felizes, as duas sentavam-se diante de pequena mesa, posta com simplicidade.
Então a mãe se punha a contar à filha as histórias de vida do Aniversariante Celeste, com tamanha ternura na voz, que ambas, extasiadas pela serenidade acolhedora daquela hora, pareciam levitar por sobre os limites da vida cotidiana, atingindo, pelo menos em seu íntimo, as alturas que sonhamos serem habitadas somente pelos anjos. E nesse estado de êxtase sublime passavam sagrados minutos que poderiam bem ser horas, porque ninguém consegue medir, com os ponteiros do relógio, quanto tempo um ser humano se entrega a outro em verdadeira comunhão amorosa.
Depois, faziam refeição modesta, uma oração de agradecimento a Jesus e dormiam sono pacífico até a manhã seguinte. Durante esse sono, Ana Clara costumava sonhar com esse Anjo feito homem, que a acolhia em seu colo no alto de uma colina, à sombra de grande mangueira. A brisa fresca vinda da pradaria, balançava suavemente a túnica alva que vestia o corpo esbelto do Divino Amigo. Seus cabelos castanho-avermelhados dançavam ao canto de rouxinóis invisíveis que teciam, no vento, sua sinfonia de amor. Os olhos doces e azulados de Seu protetor dos sonhos contemplavam-na com infinita candura, como se lhe dissessem que no mundo não havia nada a temer; que, no mundo, tudo seria paz enquanto estivesse acomodada em seus braços... Ao amanhecer a menina guardava a impressão viva de que havia estado realmente nos braços do benfeitor dos pobres, dos oprimidos e dos necessitados... E assim passava dias de felicidade com aquela sensação de acolhimento em seu coração esperançoso...
Essas eram as recordações felizes da pequena rolinha descida de seu venturoso ninho.
Depois, não demorava muito, vinham as imagens tristes da época em que a mãezinha adoecera. Na ocasião, a menina, pequena criança assustada, via a querida mãezinha emagrecendo dia a dia, seus cabelos rareando, a ossatura tornando-se proeminente, mas nada compreendia. Na fisionomia sofrida da genitora, pressentia dores terríveis às quais a mãe parecia resistir com esforço heroico, para nada demonstrar. Ao contrário, dizia-lhe para ser forte, que estava tudo bem!
Um dia, sua mãe, já num dos últimos momentos em que passariam juntas, chamou-a ao quarto, e anunciou com extremada ternura:
- Eu terei que viajar para longe daqui, minha filha. É uma viagem que não posso adiar... Ficaremos algum tempo sem nos ver. Mas pedi a sua tia Elisa para cuidar de você até que possamos nos encontrar novamente. Você ficará feliz por tê-la como amiga. A tia Elisa é um anjo que Deus está colocando na sua vida...
A menina compreendeu o que ficara nas entrelinhas e chorou amargamente ao ouvir essas palavras. Mas de nada, evidentemente, adiantou! Poucos dias depois, estava morando com sua tia Elisa. E outros poucos dias mais, estava ela, agora, sentada na sala dessa tia, à véspera do natal. Sua mãe tinha ido encontrar-se com Jesus. Isso a consolava. Imaginava Jesus segurando a mãezinha no colo, da mesma maneira como fizera com ela mesma em seus sonhos de natal. Assim tinha certeza de que tudo estava bem, de que não havia nada a temer, de que, no mundo de sua mãe querida, tudo seria paz enquanto estivesse acomodada nos braços desse Jesus amado....
Foi quando soou a voz estrondosa de seu Augusto, marido da tia Elisa, arrebatando abruptamente a pensativa Ana Clara de seus sentidos devaneios:
- E, agora, aquele que todos estavam esperando acaba de chegar! - bradou o tio - A pessoa mais importante da noite!
Ana Clara, de um salto, sentiu seu coraçãozinho disparar! Aquele que todos estavam esperando! A pessoa mais importante da noite! Quem seria? Só poderia ser Jesus! Seria possível? Pensava com toda a naturalidade de seu raciocínio infantil, que, em todos esses natais nas ruas de sua cidade Ele nunca aparecera pessoalmente... Mas agora havia um bom motivo! Provavelmente seu querido e amado Jesus viera até ali, hoje, na casa da tia Elisa, que era um Anjo, segundo palavras de sua própria mãe, para trazer notícias da mãezinha querida! O Semblante de Ana Clara iluminou-se, em maravilhado êxtase!
- Com vocês, o Papai Noel! - prosseguiu o tio Augusto!
A pronúncia dessas palavras teve efeito poderoso sobre a assembleia de crianças que se agrupara na sala maior, onde estava a árvore de natal. Foi uma gritaria geral, um frenesi que a muito custo se acalmou. Logo, Ana Clara pôde ver entrando pela porta da frente uma figura opulenta, de barbas e cabelos brancos, olhos negros e vestida de cetim vermelho. Em nada lembrava a pessoa delicada de seu Divino Amigo, de cabelos cor de ouro, olhos cor de poesia e vestes de luz...
A decepção transparecia no semblante da menina. Flagrante contraste entre sua rigidez marmórea e a efusão de entusiasmo que apropriou-se da meninada! Ana Clara, por certo, sabia bem quem era Papai Noel, apesar dessa figura alegre, embora espalhafatosa, nunca haver participado do rito singelo de seus outros natais. Mas não atinava com o motivo pelo qual o velhinho de barbas brancas fora anunciado como a pessoa mais importante da noite! Deveria haver algo de muito especial, de muito bom naquele velhinho, para ele ser ainda mais importante que o seu querido Jesus... Para ela, aquilo era muito estranho, mas os adultos - esse era o modo de pensar da menina - deveriam saber o que diziam!
Seguiram-se momentos animados em que todos receberam presentes. Depois, o velhinho foi-se embora, as pessoas serviram-se de uma farta e saborosa ceia e, pouco a pouco, os convidados despediram-se.
Mais tarde, madrugada adentro, no quarto improvisado em que estava instalada, Ana Clara não conseguia dormir. Aquele primeiro natal com a família de sua tia Elisa tinha sido uma experiência muito diferente de tudo quanto aprendera e vivera antes e, portanto, uma experiência muito perturbadora. No meio dessa inquietação, tomou uma decisão: levantou-se, tomou papel e lápis e começou a escrever...
Na manhã seguinte, tia Elisa, sempre a primeira a levantar-se, reparou naquele inesperado envelope dependurado na árvore de natal. Intrigada, tomou o envelope e leu: "Ao papai-noel".
Tomada de curiosidade, leu a seguinte carta de poucas linhas:
"Senhor Papai Noel,
aprendi hoje que o senhor é a pessoa mais importante da noite de natal,
por isso acho que só o senhor pode me ajudar.
Eu queria que o senhor trouxesse para mim,
neste natal,
o meu amigo Jesus.
Obrigada,
Ana Clara."
Tia Elisa pensou, então, no que a irmã lhe dissera pouco antes de seu desencarne:
"- Você ficará feliz por tê-la como amiga. A Ana Clara é um anjo que Deus está colocando na sua vida..."
E lágrimas brotaram-lhe dos olhos.
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