sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Seu Ângelo cantou

Do lado direito havia flores. De quem entrava. Do lado direito de quem entrava naquele supermercado, havia flores. Não de todos, mas de vários, de vários tipos. Quem quisesse veria o cheiro. Delírios. Também de rosas e de perfume anônimo. Havia elegantes "bouquets" decorados, que, de coloridos, pareciam crisântemos de todas as flores. Pareciam begônias, Margaridinhas dos campos, também Margaridas e Cláudias e Verônicas.

Por entre os expositores, fregueses com seus carrinhos de compras zanzavam interessadíssimos em nada mais. Nada menos. Cada um se apropriava de uma lata de refrigerante, de um pacote de arroz, uma garrafa de qualquer coisa. E de todos que existiam, existia um só. Que era ele. O próprio, Aquele que fazia as compras. As outras pessoas... Ah! As outras pessoas estavam interessadíssimas em nada mais. Nada menos.

No açougue, seu Juvenal! Faca afiada nas mãos. Sim, ele mesmo. Porque todo açougue tem que ter um Juvenal. Se não tiver, deve ser um açougue vegetariano. Nem presunto. Nem carne branca. Ainda bem! Mas lá tinha. Que pena. Aliás não tinha penas, porque já estava sem elas... E desossada.

As moças da peixaria vendiam um permanente sorriso, sardônico. Mas das duas, sardinhas mesmo, só tinha uma. A outra, que se chamava Catarina, exibia uma pequena marca de nascença ao lado da sobrancelha. Mas isso não conta! Ela era da padaria e desinformava monotonamente alguns pãezinhos franceses, italianos e portugueses. Não sabia que todos eram nacionais!

Nas caixas registradoras, umas quatro. Da tarde. Também, filas. As funcionária vendiam um permanente sorriso, real. Também cartão de débito, também cartão de crédito! É fato quase indiscutível que cada um tem o sorriso necessário de cada dia! Além do verdadeiro, é claro, que esconde debaixo da tendinite (quando chora!). Mas um dia será diferente. Hoje é assim!

Na fila número três - na verdade não havia número - Dona Úrsula estava apressada. No relógio o tempo todo. Olhava como se pudesse adiantar o tempo. E batia o pezinho e suspirava. Dividia o interesse com o senhor de trás, que não tinha o menor estresse. Ou vice-versa.

*#---@?

Foi aí que Seu Ângelo cantou.

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Seu Ângelo já saía com suas compras, no corredor frontal do supermercado, quando inesperadamente, para surpresa de todos, estufou o peito e cantou, com sua amadurecida voz de tenor, num italiano incompreensível, mas belo, o trecho mais famoso de uma ópera que eu desconheço.

E aquele som que premiava a tarde como os primeiros raios da aurora premiam o amanhecer, foi encontrando seu caminho por entre as flores da direita, por entre as gôndolas repletas de mercadorias, foi tocando como brisa os ouvidos dos fregueses desinteressados, que silenciaram num encanto embevecido. 

Foi nessa toada suave, inesperada, tranquila, mas cativante, que a música de Seu Ângelo, preenchendo completamente o ambiente, avisou seu Juvenal de que a carne era fraca, e o açougueiro abandou a rudeza de seu dia a dia para transformar-se num protagonista atento daquele fato.

Assim mesmo, com essa tranquilidade toda, essa voz empostada do cantor de improviso percorreu os corredores até chegar, afinadíssima, à funcionária sorridente da peixaria... E aquelas sardas que ela tinha no rosto se iluminaram como poesia enquanto a melodia docemente penetrante daquele canto inesperado fazia arregalar as sobrancelhas de Catarina, do outro lado da loja, cuja marca de nascença, agora, dançava alegremente!

Foi desse mesmo modo, nota a nota, timbre a timbre, som a som, que a voz vibrante de Seu Ângelo banhou a alma de todas aquelas pessoas silenciosamente embevecidas, fez com que Dona Úrsula esquecesse o relógio e que o senhor de trás esquecesse Dona Úrsula. E as quatro filas, diante das caixas registradoras, e as quatro funcionárias que as operavam, agora compunham uma plateia anonimamente enfeitiçada, na casa de espetáculos que emergira da vida cotidiana, e, por um momento, esqueciam-se de si mesmas e integravam a corte de atores e atrizes daquela ópera desconhecida, desembarcando da tragédia das próprias vidas para alçar voo na vibrante ousadia alheia.

E Seu Ângelo cantou. 

E a ressonância fez vibrar as flores, que inundaram o ambiente com a doce harmonia de uma orquestra perfumada.

E Seu Ângelo cantou.

E a ressonância transformou em lágrimas as pequenas sardas que sorriam no rosto iluminado da funcionária da peixaria.

E Seu Ângelo cantou.

E a ressonância transformou o facão agudo de seu Juvenal na batuta firme do maestro que conduzia à distância a orquestração das flores.

E Seu Ângelo cantou.

E a ressonância transformou em coro arrebatado as vozes mudas da plateia que se formara em todo o ambiente.

E Seu Ângelo cantou.

Cantou, cantou e cantou.

Quando Seu Ângelo foi embora, com um sorriso largo de felicidade incontida a estampar-lhe o rosto, por algum tempo as pessoas ficaram imóveis. Não havia o que fazer, nem o que dizer. Aquele momento exclusivo em suas vidas deixara-as temporariamente sem ação. E permanentemente tocadas por um fato que jamais esqueceriam:

- o fato insubstituível em suas vidas, de que Seu Ângelo havia cantado!

Gilberto de Almeida
07/11/2014



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