quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Depois das Ruas - Capítulo 6 - Um Sonho dentro do Sonho

Se ainda não leu, veja os capítulos anteriores deste conto:

Capítulo I - Impacto de Uma Noite
VI - Um Sonho dentro do Sonho


      O recinto era um cômodo simples. As paredes haviam sido recobertas por um revestimento em relevo que lembrava pequenas almofadas dispostas lado a lado. Não havia janelas. Numa das paredes, um crucifixo prateado de uns vinte centímetros de altura era o único objeto decorativo. No chão estava uma peça de tapeçaria solitária e alguns acolchoados de aparência confortável. Uma luz violeta conferia ao ambiente certa aura de paz e mansidão. Junto à parede, abaixo do crucifixo, um pequeno móvel onde um instrumento eletrônico, parecido com um aparelho de som, somava-se à mobília escassa do ambiente.

      O Ancião sentou-se sobre um acolchoado, perto do aparelho e, com um gesto, convidou seu hóspede a fazer o mesmo:

      - Relaxe - Disse ele, enquanto ajustava alguma coisa no pequeno equipamento - Este é mais um singelo avanço tecnológico, inexistente no seu tempo! Como é sua primeira vez, talvez seja útil controlar a respiração...

      A seguir, o venerando, após adotar postura confortável, coluna absolutamente ereta, e orientar o jovem a fazer o mesmo, ensinou o jovem a sentir a própria pulsação e controlar seus movimentos inspiratórios e expiratórios, ao sabor do ritmo cardíaco:

      - Agora é preciso fechar os olhos e relaxar... – Convidou, finalmente o ancião. Depois  cerrou os próprios olhos e assim permaneceu em atitude serena por vários minutos. O silêncio era pleno.
     
      Pedro, confuso, não sabia exatamente como proceder. Movido, no entanto, quer pela curiosidade, quer pela influência do comando brando, porém irresistível, de seu interlocutor, decidiu embarcar naquele exercício de relaxamento.

      O jovem, a princípio com seus pensamentos inquietos, encontrou dificuldade para relaxar, mas a absoluta quietude do recinto, a atitude relaxamento, o pranaiama natural, aquela luminosidade suave e a presença tranquilizadora do ancião foram, lentamente, exercendo efeito sedativo sobre nosso personagem. Aos poucos, os pensamentos emaranhados foram dando lugar ao silêncio interior e a um estado de sonolência superficial... Devagar, a escuridão de seu panorama íntimo foi sendo insidiosamente preenchida por luminosidade acolhedora e indefinível. Pequenos torvelinhos de cores serelepes brotavam nos recantos de sua mente no horizonte limitado pelas pálpebras cerradas. De início, como imagens trêmulas e evanescentes, mas, pouco a pouco, assumindo feições de um campo tingido de tonalidades vivas e reconfortantes. Sua paisagem mental foi percorrendo lentamente o espectro luminoso, quando pareceu estacionar em acolhedores matizes de violeta. Passados alguns instantes nos quais Pedro quase adormecia à luz serena desse violeta interior, ouviu-se um rangido suave como se a porta do recinto fora aberta. Sob estímulo desse ruído, despertando repentinamente de seu estado de êxtase, Pedro abriu os olhos no momento exato em que uma luminosidade soberba e ofuscante, proveniente do ambiente externo, invadia o pequeno cômodo através da porta, agora entreaberta. Estranhamente, ao cerrar-se a porta, ao som do mesmo ranger suave que antes anunciara sua abertura, a brilhante claridade permaneceu no interior do recinto, ao invés de cessar completamente, como o jovem esperaria.

      Surpreso, mas ao mesmo tempo tomado de serenidade, Pedro viu essa claridade ofuscante, na forma de um vulto luminoso, mover-se pelo ambiente e estacionar entre ele próprio e o ancião. Devagar seus olhos iam-se acostumando com o fulgor resplandecente que parecia ocupar cada vez mais completamente o espaço daquele recinto. Devagar, o rapaz começou a distinguir uma silhueta humana no interior daquela expressão cintilante de cores cristalinas que, aos poucos, foi se firmando ante sua vista com impressionante nitidez! Agora distinguia a figura de uma mulher belíssima, de cabelos ruivos e cacheados esplendorosamente iluinados. Os olhos verdes carinhosos expressavam uma bondade inesgotável. Trajava um blusa cor de carmim e uma saia longa, muito alva, até os tornozelos. Usava calçados simples, também alvíssimos, aparentemente confeccionados de tecidoc... Era Carmem, a mulher da fotografia. A esposa do seu afetuoso anfitrião! Pedro estava extasiado... Impressionado com a figura luminosa e belíssima a sua frente e anestesiado por um torpor inexplicável. Impressionava-se com a visão, mas ao mesmo tempo aceitava aquela aparição angelical com a mesma tranquilidade da pessoa que, no ambiente onírico de um sonho, convive sem ressaltos com as criações surpreendentes da própria mente!

      Nesse estado de estarrecida passividade, nosso protagonista assistiu a figura sublime de mulher aproximar-se de si e contar-lhe impressionante história sem, no entanto, mover os lábios para dizer-lhe uma única palavra. Ao invés disso, o jovem viu-se transportado para o local exato onde os fatos significativos aconteciam, presenciando a história a desenrolar-se diante de seus olhos de maneira tão viva e realista quanto era viva e realista sua participação nos protestos da capital paulista no dia anterior. Numa transição minuciosa por demorados acontecimentos históricos, nosso personagem imergiu profundamente em fatos que, no ano de dois mil e setenta e três, eram  história, eram passado, mas, ao mesmo tempo constituíam uma perspectiva outrora inimaginável de seu próprio futuro. E assim, ano a ano, década a década, o estupefato adolescente participou de experiências das quais supostamente ainda participaria se esse sonho espetacular não o tivesse arrebatado de sua vida trivial no ano de dois mil e treze...

      Foi assim, vivenciando de corpo e sentindo na alma,  que Pedro Celso Nascimento teve conhecimento dos fatos aparentemente desconexos e absolutamente dolorosos responsáveis por dizimar dois terços dos homens e mulheres sobre a superfície do globo, a partir da terceira década do milênio. Epidemias, calamidades naturais, acidentes numerosíssimos de todos os tipos, a insanidade, tudo parecia ter escolhido essa época específica da história da humanidade para acontecer... As fibras do coração de nosso jovem idealista sangravam num sofrimento indizível diante de tantos acontecimentos penalizantes...

      Mas, aos poucos a paisagem daquela viagem alucinante foi-se transformando num cenário de regeneração e fraternidade. O panorama de múltiplas epidemias ia dando ensejo para o surgimento de almas abnegadas que entregavam seus corações aos enfermos assistindo-os do momento das primeiras mazelas até o leito da morte; o pós-vir das calamidades era o pretexto para os sobreviventes excederem sua própria capacidade de servir, estendendo-se as mãos para o trabalho de reconstrução, sob a luz pacificadora de um novo horizonte, adivinhado, no íntimo, pelas dedicadas criaturas; a cada acidente, onde as vítimas fatais eram recolhidas deste para outro mundo por mãos invisíveis e amorosas, restava aos vivos confortar seus vivos, fazendo desabrochar, no coração humano a florada caridosa de uma primavera de ventura; onde a loucura, o assassinato e a guerra frutificavam da insanidade, a colheita já não se fazia com rancor e ódio, mas com a sensatez e perdão que pareciam invadir a paisagem interior da personalidade humana em todos os continentes, no anseio fraternal de uma multidão de pessoas extenuadas pela violência...

      Pedro via, mas não compreendia. Sentira em seu próprio coração a dor de uma inumerável quantidade de mazelas, mortes e sofrimento que depois, aos poucos, foi cedendo espaço para o seu oposto, para a paz, para a fraternidade, para a regeneração de tudo aquilo que antes fora destruído... Mas nenhuma explicação. Qual o motivo de todos aqueles acontecimentos trágicos? O anjo amoroso a seu lado, uma espécie de guia silencioso, o tranquilizava com sua presença magnânima e benevolente, mas não lhe fornecia as explicações. Ao contrário, sua presença era como a de uma autoridade bondosa e sublime, diante da qual não se faz perguntas, diante da qual tudo se aceita como verdadeiro e absoluto, como se fora parte de um planejamento irretocável da divindade...

      E assim Pedro, levado a uma compreensão interrogativa, a uma aceitação tácita, mas inexorável, viajava rumo a um futuro cada vez mais distante. Era conduzido, passo a passo, acontecimento por acontecimento, até aquele exato instante do qual se retirara antes, no recinto das luzes violetas, dentro do apartamento de seu anfitrião. Nesse traslado pela ponte inebriante do tempo, um torpor irresistível foi transformando suas vívidas experiências num torvelinho de reminiscências cuja nitidez se perdia conforme avançava rumo ao presente... Rumo ao futuro... Pessoas se faziam vultos, paisagens se desfaziam em aquarelas fugidias, vozes sonoras se encolhiam em murmúrios imperceptíveis...


      Até que, do sonho, o adolescente, extasiado, parecia retornar à realidade anterior onde tudo o que percebia era uma luminosidade absolutamente intensa...

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Próximo Capítulo -> Capítulo 7 - Pesadelo


Gilberto de Almeida
08/08/2013


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