IV - Segundo Despertar - As Revelações Continuam
Quando
abriu os olhos, o garoto olhou apressadamente ao redor, procurando por um
parente, uma enfermeira, ou alguém conhecido. Mas, para seu desencanto, aquele
sonho ainda não terminara. Despertava pela segunda vez no mesmo sofá em que
acordara havia mais ou menos uma hora. O velhinho estava sentado em uma cadeira
bem a sua frente, aparentemente aguardando que despertasse, e esboçou um
sorriso de satisfação:
-
Muito bem, meu jovem! Reconheço a dificuldade do momento pelo qual você está
passando. Eu lhe fiz uma revelação – e ainda virão outras no dia de hoje – bem
difícil de assimilar... Por isso mesmo acredito que está na hora de você se
levantar, tomar um bom banho e aí nós dois vamos sair para um passeio ao ar
livre. O sol, o ar fresco e o contato com outras pessoas e ambientes far-lhe-ão
bem...
Pedro,
ainda um torporoso e anestesiado pela incapacidade de lidar com os
acontecimentos, balbuciou titubeante:
-
Estou sonhando?
- Não,
menino, você não está sonhando... - Disse o ancião, com absoluta ternura e
sinceridade, que transpareciam em seu olhar - Mas como, exatamente, você veio
até mim, eu não sei explicar. Só posso lhe garantir que isso, seguramente, não
é um sonho...
Depois, subindo para um tom de voz mais vibrante a animado, emendou:
-
Vamos! É hora de dar uma volta. Uma caminhada pela rua vai ajudar a esclarecer
tudo!
Apontando para um corredor no final da sala, acrescentou:
- Vá
se lavar! No corredor há um banheiro. Primeira porta à esquerda. Não vá se
confundir! Lá você vai encontrar toalhas limpinhas, uma escova de dentes sem
uso e uma muda de roupa aguardando por você. Ontem à noite, quando você chegou,
tive pouco tempo para providenciar roupas novas... Já não me lembrava que você
viria, caso contrário teria feito isso com mais tempo! Sabe como é... A idade
vem e a memória vai... Mas acho que as roupas devem servir. Se não servirem,
terá que se contentar com elas por enquanto! Poderemos comprar outras, depois.
O
rapaz ainda era um repositório de interrogações... Agora havia roupas para ele
e uma escova de dentes novinha no banheiro... Se não era um sonho, era uma
alucinação muito estranha...
Semi-hipnotizado pela insensatez dos acontecimentos e pela atitude
decidida de seu anfitrião, o rapaz cambaleou até o banheiro. O ancião
aproveitou para colocar uma bermuda e sandálias. Estava uma manhã ensolarada e
cheia de energia. Não perderia o que o aguardava nesse dia por absolutamente
nada!
Cerca
de trinta minutos depois, os dois saíam do elevador, no pátio do andar térreo,
uma área agradável e ensolarada. O rapaz, após um banho relaxante e trajando
roupas limpas e confortáveis que lhe couberam perfeitamente bem, embora de um
gosto evidentemente diferente do seu, sentia-se mais leve. O ancião acompanhava-o
sem pressa, vestindo suas bermudas claras e sandálias macias de tecido. O
estranho reloginho que projetava imagens estava em seu punho esquerdo. Uma
bengala o ajudava a caminhar no ambiente externo.
- O
que foi na perna? - Perguntou o rapaz, numa tentativa de quebrar o
silêncio, enquanto reparava com numa
cicatriz de uns cinco ou dez centímetros de extensão pouco abaixo do joelho
direito do seu anfitrião, sobre a face lateral da tíbia.
- Ah!
Isso! - apontou para a própria perna com a bengala - Um acidente! Eu tinha mais
ou menos a sua idade quando aconteceu. Não gosto de lembrar-me de como
aconteceu. O pouco de que me lembro, traz reminiscências bem desagradáveis. Prefiro
não falar sobre isso, se você não se incomodar...
-
Desculpe... - acabrunhou-se o jovem, ao perceber que tocara num assunto cuja memória
o velhinho preferia evitar - Não quis entrar num assunto delicado. Era só para
puxar conversa...
- Não,
não há porque ficar constrangido, rapaz! O importante é que fui operado na
ocasião e depois fiquei bem. De fato houve alguma dificuldade de consolidação
do osso e de cicatrização, por isso manco até hoje. Mas, na verdade acho que
essa bengala é mais uma muleta psicológica do que física... Sabe como é... Gato
escaldado tem medo de água fria!
O menino
deu um sorriso sem compreender muito bem essa explicação, mas considerou-se
suficientemente esclarecido para não insistir naquele assunto.
Alguns
minutos depois, caminhando e conversando amenamente sob a luz do dia ensolarado
e ao sabor de agradável brisa matinal, já se notava um efeito tranquilizante
sobre a inquietude do rapaz, como previra o ancião. Enquanto caminhava, sentia
com jovial alegria, o frescor do vento a acariciar-lhe as faces e balançar-lhe
os cabelos longos; encantava-se com a pulsação urbana da cidade, como se pela
primeira vez caminhasse por ela; o ar parecia mais saudável, o céu, mais
aconchegante; tinha a impressão de ver mais árvores e mais espaços ajardinados;
as calçadas, mais largas, pareciam, agora, estranhamente macias. Notou um leve
desnivelamento da parte central do passeio em relação às duas bordas laterais.
Tanto à sua direita quanto à esquerda havia um entalhe no perfil do pavimento,
assemelhando-se a uma espécie de guia. O asfalto também era aparentemente
diferente, mais macio e, de alguma forma, parecia iluminado. Quando chegaram à
primeira esquina, reparou à sua direita, num pilar onde se lia: "Rua Padre
João Manuel". Logo abaixo viu alguns pontos em relevo que reconheceu ser
alguma inscrição em Braile. No lado adjacente do pilar lia-se "Alameda
Santos". Logo abaixo dessa indicação, mais informação em Braile. Agora
conseguira se localizar. Mais uma quadra e estaria na Avenida Paulista, palco
de sua aventura da noite anterior. Noite anterior? Esse pensamento o afastava
de seus prazerosos devaneios. Já não era capaz de afirmar com segurança o que
acontecera na noite anterior...
- Para
que servem essas bordas laterais nas calçadas? - Disse o jovem, quebrando o
momentâneo silêncio.
O
velho pareceu não atinar com o objeto da pergunta do menino. Depois, olhando
para baixo, percebeu:
- Ah!
Isto? - E bateu com as bengalas nas guias levemente salientes à sua direita e
esquerda - Isso foi um projeto de lei de muitos anos atrás, não me lembro
exatamente de quando... É para os cegos! Para poderem ter melhor referência ao
caminhar pelas calçadas. Lembro-me de que fizeram grandes protestos nas ruas
por todo o país. Também dessa época vem a obrigatoriedade da existência dos
pilares com identificação dos nomes das ruas em Braile! Não sei se você
reparou...
O
rapaz assentiu com a cabeça, admirado... - Muitas coisas boas, por aqui -
Alegrou-se!
Quando, alguns metros adiante, já caminhavam pela Avenida Paulista, ele
estranhou sobremaneira a quietude do lugar. Muito pouco movimento para o
"Centro Financeiro" do país - pensou - Muito menos gente pelas ruas
do que costumava ver. Além disso, os veículos eram certamente diferentes do que
jamais vira. As roupas das pessoas eram todas mais ou menos esquisitas,
parecidas com as que o bom velhinho lhe dera para vestir. Devagar, conciliando
em seu pensamento a estranheza de todo aquele conjunto de novidades, começava a
aceitar mais convicta e pacificamente, em seu íntimo, aquela ilusão absurda de passear pelas ruas
de São Paulo sessenta anos no futuro.
Assim,
Pedro foi se deixando envolver por aquilo que parecia ser uma ilusão
agradável... Enquanto acompanhava o ancião em seus afazeres matinais, notava
uma cidade muito mais tranquila, uma paisagem urbana mais agradável, pessoas
mais serenas e aparentemente mais felizes e, enfim, gente mais acolhedora e bem
humorada em todos os lugares...
O
jovem também ficara impressionado com as novidades tecnológicas: a maioria das
pessoas pagava suas compras através de mecanismos de leitura biométrica ou utilizavam
um relógio de pulso semelhante ao do seu anfitrião para transferir valores nas
transações comerciais; havia proporcionalmente muito mais veículos coletivos e
menos individuais do que se lembrava; os veículos eram silenciosos, de aspecto
futurista, e pareciam não eliminar fumaça. O seu paciente cicerone explicara-lhe
que a gasolina, o álcool e outros combustíveis do gênero vinham paulatinamente
sendo abandonados nas últimas décadas e, com isso, a qualidade do ar melhorara
bastante...
E assim
prosseguiram, nesse "tour" que incluiu, até um pouco antes das treze
horas, a visita a uma agência bancária, a uma farmácia e a um supermercado. Foi
quando seu então já cansado guia convidou-o para fazer uma pausa para o almoço,
que foi muitíssimo bem aceita pelo menino. Entraram num restaurante simpático,
com mesas na calçada, toalhas com delicadas estampas floridas, protegidas por
guarda-sóis. Um funcionário antigo da casa, de aparência bonachona,
cumprimentou o conhecido cliente pelo nome:
- Bom
dia, seu Pedro. Mesa para dois?
Foi
apenas nesse momento que o adolescente percebeu que até então não se incomodara
em perguntar o nome do seu dedicado anfitrião! Surpreendeu-se com a
coincidência:
-
Então o senhor é Pedro, também? - Perguntou, enquanto eram acomodados em uma
mesa agradável na calçada.
- É,
meu jovem, esse é meu nome. Aliás, é bom que estejamos sentados, porque o que
tenho a lhe revelar agora há de lhe causar certo espanto!
Seu Pedro fez um gesto para o garçom, solicitando
que lhe desse alguns minutos a sós com o rapaz, ao que ele aquiesceu
prontamente. Certificando-se de que o conhecido funcionário já estava a alguma
distância e que poderia então conversar em particular com o garoto, o ancião
puxou, do bolso traseiro da bermuda, sua carteira de documentos e dela retirou
o que parecia ser uma cédula de identidade estampada numa espécie de plástico
flexível e estendeu-a para o garoto:
-
Examine, rapaz. Mais uma vez, melhor do que eu lhe falar é você ver com seus
próprios olhos!
O rapaz estendeu a mão direita com curiosidade,
segurou o documento e trouxe-o para perto de si. Fitou por um instante e,
incontinente, soltou uma exclamação em alto brado:
- Meu
Deus!
Clientes e funcionários dirigiram olhares arregalados para a mesa,
curiosos sobre o motivo da exacerbada exclamação. Nosso personagem afoito,
percebendo o inconveniente de sua intempestividade, aguardou que as pessoas ao
redor retornassem o interesse para seus próprios assuntos e dirigiu-se em
surdina para o ancião, que, sem alterar sua fisionomia, parecia absolutamente seguro
da situação:
- O
que significa isso?
E o
rapaz colocou o documento de identidade do ancião sobre a toalha florida. Com
indicador apontando para o nome que ali se lia. Mantinha os olhos arregalados e
a expressão facial petrificada. Mas sem esperar resposta, tomou esbaforidamente
entre as suas mãos a mão esquerda do ancião, examinando-a detidamente! A seguir
ergueu a manga direita da blusa do venerando, inspecionando uma cicatriz
transversal na altura da metade de seu úmero! Não podia ser! Olhou para o
tornozelo esquerdo que estava exposto, uma vez que o velhinho vestia bermudas
com sandálias... Não acreditava no que via! Por último fixou o olhar no
supercílio direito de seu conviva enquanto levava a mão sobre o curativo no seu
próprio supercílio... Também ali havia uma pequena cicatriz muito tênue, como
as demais, sugerindo a lembrança de um ferimento muito antigo... O rapaz estava
perplexo. Todas as cicatrizes coincidiam com as suas próprias, com exceção
daquela logo abaixo do joelho direito do ancião. O jovem estava paralisado... -
"Pedro Celso Nascimento" - Era o nome que se lia na cédula de
identidade que ele havia depositado sobre a mesa e para a qual agora olhava
fixamente, sem conseguir dizer uma palavra...
Gilberto de Almeida
06/08/2013
06/08/2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário