segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Depois das Ruas - Capítulo 4 - Segundo Despertar - As Revelações Continuam

Se ainda não leu, veja os capítulos anteriores deste conto:

Capítulo I - Impacto de Uma Noite
IV - Segundo Despertar - As Revelações Continuam

      Quando abriu os olhos, o garoto olhou apressadamente ao redor, procurando por um parente, uma enfermeira, ou alguém conhecido. Mas, para seu desencanto, aquele sonho ainda não terminara. Despertava pela segunda vez no mesmo sofá em que acordara havia mais ou menos uma hora. O velhinho estava sentado em uma cadeira bem a sua frente, aparentemente aguardando que despertasse, e esboçou um sorriso de satisfação:

      - Muito bem, meu jovem! Reconheço a dificuldade do momento pelo qual você está passando. Eu lhe fiz uma revelação – e ainda virão outras no dia de hoje – bem difícil de assimilar... Por isso mesmo acredito que está na hora de você se levantar, tomar um bom banho e aí nós dois vamos sair para um passeio ao ar livre. O sol, o ar fresco e o contato com outras pessoas e ambientes far-lhe-ão bem...

      Pedro, ainda um torporoso e anestesiado pela incapacidade de lidar com os acontecimentos, balbuciou titubeante:

      - Estou sonhando?

      - Não, menino, você não está sonhando... - Disse o ancião, com absoluta ternura e sinceridade, que transpareciam em seu olhar - Mas como, exatamente, você veio até mim, eu não sei explicar. Só posso lhe garantir que isso, seguramente, não é um sonho...

      Depois, subindo para um tom de voz mais vibrante a animado, emendou:

      - Vamos! É hora de dar uma volta. Uma caminhada pela rua vai ajudar a esclarecer tudo!

      Apontando para um corredor no final da sala, acrescentou:

      - Vá se lavar! No corredor há um banheiro. Primeira porta à esquerda. Não vá se confundir! Lá você vai encontrar toalhas limpinhas, uma escova de dentes sem uso e uma muda de roupa aguardando por você. Ontem à noite, quando você chegou, tive pouco tempo para providenciar roupas novas... Já não me lembrava que você viria, caso contrário teria feito isso com mais tempo! Sabe como é... A idade vem e a memória vai... Mas acho que as roupas devem servir. Se não servirem, terá que se contentar com elas por enquanto! Poderemos comprar outras, depois.

      O rapaz ainda era um repositório de interrogações... Agora havia roupas para ele e uma escova de dentes novinha no banheiro... Se não era um sonho, era uma alucinação muito estranha...

      Semi-hipnotizado pela insensatez dos acontecimentos e pela atitude decidida de seu anfitrião, o rapaz cambaleou até o banheiro. O ancião aproveitou para colocar uma bermuda e sandálias. Estava uma manhã ensolarada e cheia de energia. Não perderia o que o aguardava nesse dia por absolutamente nada!

      Cerca de trinta minutos depois, os dois saíam do elevador, no pátio do andar térreo, uma área agradável e ensolarada. O rapaz, após um banho relaxante e trajando roupas limpas e confortáveis que lhe couberam perfeitamente bem, embora de um gosto evidentemente diferente do seu, sentia-se mais leve. O ancião acompanhava-o sem pressa, vestindo suas bermudas claras e sandálias macias de tecido. O estranho reloginho que projetava imagens estava em seu punho esquerdo. Uma bengala o ajudava a caminhar no ambiente externo.

      - O que foi na perna? - Perguntou o rapaz, numa tentativa de quebrar o silêncio,  enquanto reparava com numa cicatriz de uns cinco ou dez centímetros de extensão pouco abaixo do joelho direito do seu anfitrião, sobre a face lateral da tíbia.

      - Ah! Isso! - apontou para a própria perna com a bengala - Um acidente! Eu tinha mais ou menos a sua idade quando aconteceu. Não gosto de lembrar-me de como aconteceu. O pouco de que me lembro, traz reminiscências bem desagradáveis. Prefiro não falar sobre isso, se você não se incomodar...

      - Desculpe... - acabrunhou-se o jovem, ao perceber que tocara num assunto cuja memória o velhinho preferia evitar - Não quis entrar num assunto delicado. Era só para puxar conversa...

      - Não, não há porque ficar constrangido, rapaz! O importante é que fui operado na ocasião e depois fiquei bem. De fato houve alguma dificuldade de consolidação do osso e de cicatrização, por isso manco até hoje. Mas, na verdade acho que essa bengala é mais uma muleta psicológica do que física... Sabe como é... Gato escaldado tem medo de água fria!

      O menino deu um sorriso sem compreender muito bem essa explicação, mas considerou-se suficientemente esclarecido para não insistir naquele assunto.

      Alguns minutos depois, caminhando e conversando amenamente sob a luz do dia ensolarado e ao sabor de agradável brisa matinal, já se notava um efeito tranquilizante sobre a inquietude do rapaz, como previra o ancião. Enquanto caminhava, sentia com jovial alegria, o frescor do vento a acariciar-lhe as faces e balançar-lhe os cabelos longos; encantava-se com a pulsação urbana da cidade, como se pela primeira vez caminhasse por ela; o ar parecia mais saudável, o céu, mais aconchegante; tinha a impressão de ver mais árvores e mais espaços ajardinados; as calçadas, mais largas, pareciam, agora, estranhamente macias. Notou um leve desnivelamento da parte central do passeio em relação às duas bordas laterais. Tanto à sua direita quanto à esquerda havia um entalhe no perfil do pavimento, assemelhando-se a uma espécie de guia. O asfalto também era aparentemente diferente, mais macio e, de alguma forma, parecia iluminado. Quando chegaram à primeira esquina, reparou à sua direita, num pilar onde se lia: "Rua Padre João Manuel". Logo abaixo viu alguns pontos em relevo que reconheceu ser alguma inscrição em Braile. No lado adjacente do pilar lia-se "Alameda Santos". Logo abaixo dessa indicação, mais informação em Braile. Agora conseguira se localizar. Mais uma quadra e estaria na Avenida Paulista, palco de sua aventura da noite anterior. Noite anterior? Esse pensamento o afastava de seus prazerosos devaneios. Já não era capaz de afirmar com segurança o que acontecera na noite anterior...

      - Para que servem essas bordas laterais nas calçadas? - Disse o jovem, quebrando o momentâneo silêncio.

      O velho pareceu não atinar com o objeto da pergunta do menino. Depois, olhando para baixo, percebeu:

      - Ah! Isto? - E bateu com as bengalas nas guias levemente salientes à sua direita e esquerda - Isso foi um projeto de lei de muitos anos atrás, não me lembro exatamente de quando... É para os cegos! Para poderem ter melhor referência ao caminhar pelas calçadas. Lembro-me de que fizeram grandes protestos nas ruas por todo o país. Também dessa época vem a obrigatoriedade da existência dos pilares com identificação dos nomes das ruas em Braile! Não sei se você reparou...

      O rapaz assentiu com a cabeça, admirado... - Muitas coisas boas, por aqui - Alegrou-se!

      Quando, alguns metros adiante, já caminhavam pela Avenida Paulista, ele estranhou sobremaneira a quietude do lugar. Muito pouco movimento para o "Centro Financeiro" do país - pensou - Muito menos gente pelas ruas do que costumava ver. Além disso, os veículos eram certamente diferentes do que jamais vira. As roupas das pessoas eram todas mais ou menos esquisitas, parecidas com as que o bom velhinho lhe dera para vestir. Devagar, conciliando em seu pensamento a estranheza de todo aquele conjunto de novidades, começava a aceitar mais convicta e pacificamente, em seu íntimo,  aquela ilusão absurda de passear pelas ruas de São Paulo sessenta anos no futuro.

      Assim, Pedro foi se deixando envolver por aquilo que parecia ser uma ilusão agradável... Enquanto acompanhava o ancião em seus afazeres matinais, notava uma cidade muito mais tranquila, uma paisagem urbana mais agradável, pessoas mais serenas e aparentemente mais felizes e, enfim, gente mais acolhedora e bem humorada em todos os lugares...

      O jovem também ficara impressionado com as novidades tecnológicas: a maioria das pessoas pagava suas compras através de mecanismos de leitura biométrica ou utilizavam um relógio de pulso semelhante ao do seu anfitrião para transferir valores nas transações comerciais; havia proporcionalmente muito mais veículos coletivos e menos individuais do que se lembrava; os veículos eram silenciosos, de aspecto futurista, e pareciam não eliminar fumaça. O seu paciente cicerone explicara-lhe que a gasolina, o álcool e outros combustíveis do gênero vinham paulatinamente sendo abandonados nas últimas décadas e, com isso, a qualidade do ar melhorara bastante...

      E assim prosseguiram, nesse "tour" que incluiu, até um pouco antes das treze horas, a visita a uma agência bancária, a uma farmácia e a um supermercado. Foi quando seu então já cansado guia convidou-o para fazer uma pausa para o almoço, que foi muitíssimo bem aceita pelo menino. Entraram num restaurante simpático, com mesas na calçada, toalhas com delicadas estampas floridas, protegidas por guarda-sóis. Um funcionário antigo da casa, de aparência bonachona, cumprimentou o conhecido cliente pelo nome:

      - Bom dia, seu Pedro. Mesa para dois?

      Foi apenas nesse momento que o adolescente percebeu que até então não se incomodara em perguntar o nome do seu dedicado anfitrião! Surpreendeu-se com a coincidência:

      - Então o senhor é Pedro, também? - Perguntou, enquanto eram acomodados em uma mesa agradável na calçada.

      - É, meu jovem, esse é meu nome. Aliás, é bom que estejamos sentados, porque o que tenho a lhe revelar agora há de lhe causar certo espanto!

      Seu Pedro fez um gesto para o garçom, solicitando que lhe desse alguns minutos a sós com o rapaz, ao que ele aquiesceu prontamente. Certificando-se de que o conhecido funcionário já estava a alguma distância e que poderia então conversar em particular com o garoto, o ancião puxou, do bolso traseiro da bermuda, sua carteira de documentos e dela retirou o que parecia ser uma cédula de identidade estampada numa espécie de plástico flexível e estendeu-a para o garoto:

      - Examine, rapaz. Mais uma vez, melhor do que eu lhe falar é você ver com seus próprios olhos!

      O rapaz estendeu a mão direita com curiosidade, segurou o documento e trouxe-o para perto de si. Fitou por um instante e, incontinente, soltou uma exclamação em alto brado:

      - Meu Deus!

      Clientes e funcionários dirigiram olhares arregalados para a mesa, curiosos sobre o motivo da exacerbada exclamação. Nosso personagem afoito, percebendo o inconveniente de sua intempestividade, aguardou que as pessoas ao redor retornassem o interesse para seus próprios assuntos e dirigiu-se em surdina para o ancião, que, sem alterar sua fisionomia, parecia absolutamente seguro da situação:

      - O que significa isso?


      E o rapaz colocou o documento de identidade do ancião sobre a toalha florida. Com indicador apontando para o nome que ali se lia. Mantinha os olhos arregalados e a expressão facial petrificada. Mas sem esperar resposta, tomou esbaforidamente entre as suas mãos a mão esquerda do ancião, examinando-a detidamente! A seguir ergueu a manga direita da blusa do venerando, inspecionando uma cicatriz transversal na altura da metade de seu úmero! Não podia ser! Olhou para o tornozelo esquerdo que estava exposto, uma vez que o velhinho vestia bermudas com sandálias... Não acreditava no que via! Por último fixou o olhar no supercílio direito de seu conviva enquanto levava a mão sobre o curativo no seu próprio supercílio... Também ali havia uma pequena cicatriz muito tênue, como as demais, sugerindo a lembrança de um ferimento muito antigo... O rapaz estava perplexo. Todas as cicatrizes coincidiam com as suas próprias, com exceção daquela logo abaixo do joelho direito do ancião. O jovem estava paralisado... - "Pedro Celso Nascimento" - Era o nome que se lia na cédula de identidade que ele havia depositado sobre a mesa e para a qual agora olhava fixamente, sem conseguir dizer uma palavra...


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Gilberto de Almeida
06/08/2013


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