segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Depois das Ruas - Capítulo 3 - Primeiras Perguntas e Respostas

Se ainda não leu, veja os capítulos anteriores deste conto:

Capítulo I - Impacto de Uma Noite


III - Primeiras Perguntas e Respostas

      - Que barulho foi esse? - Perguntou com vivacidade o garoto, vendo no ruído inesperado, proveniente da sala ao lado, a chance para iniciar nova conversação e interromper o desconfortável silêncio!

      - Você já terminou seu café? - Arguiu de volta o ancião, também tencionando agarrar aquela oportunidade.

      O rapaz assentiu com a cabeça, lançando ao velhinho um olhar ao mesmo tempo animado e interrogativo.

      - Então venha. Acompanhe-me até a sala. Você vai gostar de ver isso!

      Ambos se levantaram e o jovem acompanhou seu simpático anfitrião até a sala ao lado, aonde chegaram a tempo de ouvir um segundo "Bip", idêntico ao anterior, ser emitido por uma espécie de relógio de pulso existente sobre a mesma escrivaninha recostada à parede onde Pedro vira o porta-retratos com a figura expressiva da dama de cabelos ruivos e encaracolados.

      O senhor apoiou o relógio em um tipo de suporte, cerrou as cortinas escurecendo um pouco mais o ambiente, direcionou para a parede o que parecia ser uma minúscula lâmpada incrustada na lateral do visor do aparelho e apertou um botão.

      Para espanto do jovem, a partir do dispositivo foi projetada uma espécie de tela de computador em fundo azul claro, onde se lia mais ou menos o seguinte:

      "Lei Federal 41/2073. Votação aberta. Encerramento em 23:52:12. Resumo da lei. Texto Completo".

      Abaixo desse "menu" via-se um título e uma descrição resumida da tal lei. Na parte lateral e superior direita, quatro pequenos painéis contadores, com os títulos "votos favoráveis", "votos contrários", "brancos" e "nulos" tinham seus números rapidamente incrementados. Um quinto painel, cujo título era "abstenções" era o único cujos valores diminuíam. A tela encerrava-se, no rodapé, por uma coluna onde era exibida uma lista de assuntos ao lado de outra, com as respectivas datas de votação. Por último, no canto inferior direito, havia um pequeno relógio que, naquele instante, marcava oito horas e oito minutos.

      Assim que essa imagem foi projetada na parede a partir do dispositivo diminuto, o jovem deixou, eufórico, escapar um entusiasmado "Uau!!". No entanto, seu entusiasmo foi vencido por uma angustiosa expressão de indagação quando viu o velhinho posicionar o polegar no que reconheceu ser um leitor biométrico de digitais instalado na correia do estranho reloginho. A seguir uma mensagem apareceu na tela:

      "Obrigado por votar!" - E logo desapareceu.

      O jovem, agora assumindo atitude de desconfiança, viu assaltarem-lhe a memória as imagens da véspera, quando compartilhava com a multidão o sentimento de insatisfação em relação ao poder público e aos políticos de seu país!

      - O senhor é deputado? É Senador? - Perguntou, em atitude de aparente decepção...

      O atencioso anfitrião pareceu hesitar por um momento, mas, ato contínuo, abriu um sorriso significativo, como se tivesse reconhecido naquela pergunta algo de agradável que o próprio rapaz não conseguia identificar.

      - Deputado... Senador... Há quanto tempo... - Deixou escapar, pensativo. Mas, reposicionando seu pensamento no momento presente, concluiu - Não, meu jovem, não sou! Sou alguém como você. Apenas um cidadão.

      - Como assim? Eu vi o senhor votar uma lei! E era uma lei federal! Como pode votar uma lei federal sem ser deputado ou senador?

      - Ótimo! Perguntar é a maneira de obter esclarecimento! Muito bem! E eu lhe respondo que você me viu votar uma lei porque, de fato, eu fiz isso, ou, melhor dizendo, você me viu votar uma lei porque cidadãos fazem isso; participam do processo legislativo do seu país! Não é necessário ser deputado ou senador para isso, não é assim? - O velhinho lançou ao rapaz um olhar ao mesmo tempo compreensivo e provocativo...

      - Não senhor! Não é assim, não! Temos representantes para isso! Pessoas comuns não votam leis! - o rapaz estava indignado - Posso não ser um gênio, mas sei muito bem que cidadãos normais não fazem isso; somente membros do poder legislativo podem votar leis!

      O ancião parecia estar chegando onde queria com aquela conversa. Sem perder a serenidade, emendou:

      - De algum tempo para cá, meu jovem, as pessoas votam diretamente, não apenas suas leis, mas também votam atos administrativos e uma série de outras questões da vida cotidiana, que precisam ser decididas...

      - Como assim? De um tempo para cá? - interrompeu o menino, indignado - Que história é essa? Quer me dizer que no prazo de algumas horas de ontem à noite até agora foi criado um sistema de votação totalmente diferente, assim, do nada? E esse relógio doido que projeta uma página de "internet" na parede? Nunca vi um negócio desses antes!

      - Não, Pedro, não quero dizer que essas coisas aconteceram...

      - E essa agora! - Interrompeu o rapaz, na continuidade da sua incaracterística euforia - Como sabe meu nome? Eu não te falei! - instintivamente palpava os bolsos à procura dos próprios documentos. Imaginou a possibilidade de o velhote ter bisbilhotado suas coisas enquanto ele dormia. Mas constatou estar tudo em perfeita ordem. Ademais, em seu íntimo sentia que o velhinho não seria capaz de uma coisa dessas. Porém, assim mesmo, prosseguiu, indignado - Quer fazer o favor de me explicar o que está acontecendo por aqui?

      - Pedro Celso Nascimento! - Exclamou o bom senhor, interrompendo o discurso do garoto antes que se transformasse em histeria!

      - Ah! Não! Não é possível! - retrucou de imediato o menino - Agora você sabe meu nome e sobrenome? Você andou bisbilhotando meus documentos enquanto eu dormia e depois os colocou no lugar de novo! Só pode ser isso! - Agora ele começava a mudar de opinião sobre a retidão moral do anfitrião - Isso já é passar dos limites! Exijo saber quem é você, onde estou e o que estou fazendo aqui!

      Após um breve instante de reflexão, o anfitrião apontou a imagem que ainda continuava projetada na parede e concluiu, pensativo:

      - Creio que você não está fazendo as perguntas corretas, meu jovem... “Onde você está” não é bem uma questão relevante... Talvez, se você descobrir por si mesmo... Sei que conseguirá! E será melhor assim. Olhe a imagem na parede com atenção... Vai descobrir fatos interessantíssimos...

      Pedro estava um tanto aturdido, desconfiado e confuso, mas tinha um sentimento incompreensível que o impelia a confiar naquele velhinho. Tomado por essa "sui generis" simpatia, decidiu fazer sua averiguação. Dirigiu-se à projeção e procurou concentrar-se. Detidamente analisava a imagem na parede. Reviu o "menu" de opções no topo da "tela", os contadores laterais, ainda em contínuo processo de atualização, o resumo da lei que o intrigante anfitrião acabara de votar, os assuntos no rodapé e as datas nas quais entrariam em votação, o reloginho no canto inferior direito mostrando a hora atual...

      - Não vejo nada de mais!

      - Olhe com mais atenção, menino! Ou melhor, não olhe! Compreenda!

      O menino voltou-se de novo à projeção, ressabiado! O que deveria encontrar, afinal? Tinha um painel de votação diante de si. Ponto. O que mais deveria ver? Visivelmente contrariado, começou a prestar atenção nos títulos dos assuntos a serem votados, no rodapé. Num relance, viu temas como: "aprovação de viagem do 'Executivo Chefe'", "proposta de ampliação de usina de energia eólica no RN" e "aprovação de construção do Centro de Pesquisas Psicofísicas em MG", entre outros. Os temas eram estranhos, a maioria não eram leis, e sim aprovação de medidas administrativas, mas isso não lhe dizia praticamente nada. Bateu os olhos nas datas de votação... E estacou! Pedro estava perplexo!

      - Pera aí! - Exclamou! - Isso aqui é um "sete" ou é um "um"?

      - Ah... - Suspirou o velhinho, com satisfação - Você está começando a descobrir...

      O garoto fixou o olhar na imagem com inaudita atenção até perceber, com certeza absoluta, as diferenças de grafia entre os números "sete" e "um" no tipo de fonte utilizada naquela projeção. Não! Não havia dúvida. Aqueles números eram todos "setes". Mas qual o sentido disso? Qual o motivo de informar as pessoas, na data de hoje, sobre um assunto a ser votado no ano dois mil e setenta e três - se aquilo era um "sete", então o ano era dois mil e setenta e três! - Ou seja, qual o objetivo de informar as pessoas sobre um assunto que seria votado somente dali a sessenta anos? Que coisa mais maluca! Procurou minuciosamente por datas mais próximas. Com tantas reivindicações nas ruas, não haveria nenhum tema importante para ser votado na próxima semana, por exemplo? Procurou, mas não encontrou! As datas sucessivas começavam, a partir da mais próxima, em vinte e seis de junho de dois mil e setenta e três e iam até vinte e cinco de julho do mesmo ano... O Cérebro do rapaz já tão achacado por surpresas naquela manhã, começava a dar sinais de fadiga. Não conseguia raciocinar...

      - O que significa isso? - Perguntou, por fim, sem encontrar uma solução lógica para o quadro diante de si - Seja qual for esse sistema de votação, qual o sentido de exibir na tela assuntos que só entrarão em pauta daqui a sessenta anos?

      O ancião, mais uma vez, sorriu com alegria. O menino estava progredindo.

      - Não há nenhum assunto para ser votado daqui a sessenta anos, meu jovem. - E tirando uma espécie de caneta do bolso da camisa, apontou para a imagem na parede, onde surgiu imediatamente a figura de um cursor de “mouse” em forma de seta. Direcionou o cursor para o relógio no rodapé da projeção e uma janela suspensa apareceu sobre a imagem de fundo, com os dizeres:

      "Data atual: segunda-feira, 26 de junho de 2073"

      - Veja, meu rapaz! Não há nenhuma votação para daqui a sessenta anos. As votações agendadas começam a partir de hoje! - completou o anfitrião, com entusiasmo, como se, enfim, tivesse chegado exatamente onde queria com aquele jogo de revelações parciais, sucessivas e surpreendentes!


      O menino pareceu congelar. Estaria sonhando? Que coisa surrealista era aquela? Com o fervor mental característico das pessoas sensíveis ao vivenciarem intensa angústia íntima, Pedro vislumbrou, numa rápida sucessão de reminiscências, a série de acontecimentos estranhos experimentados por ele desde a véspera. Havia poucas horas, ou pelo menos assim parecia, ele estava numa manifestação política no maior centro urbano do país. De repente, um mal estar, uma sensação de pancada na cabeça, e despertara no apartamento de um senhor desconhecido, aparentemente simpático e hospitaleiro, que votava leis, mas dizia não ser um representante do poder legislativo; deparara-se com uma geringonça eletrônica absolutamente nova, sem precedentes na sua vida prática e, sem mais explicações, tinha avançado sessenta anos no tempo... Não fazia o menor sentido! Talvez estivesse mesmo sonhando... Sim, poderia ser um sonho ou um delírio. Sofrera uma pancada na cabeça, tivera um estranho mal estar! Talvez, nesse momento estivesse no leito de um hospital, com uma fratura no crânio causada pela pancada na região frontal - afinal sofria de "osteogenesis Imperfecta" e fraturas vinham sendo parte corriqueira de sua história de vida. Era isso! Nesse exato instante deveria estar em estado de coma e o que vivia agora era um delírio. Sim! Só poderia ser um delírio. Não deveria dar maior importância a isso! E, confundido pelo peso dessa avalanche de pensamentos, uma imprevista descarga de adrenalina fazia acelerar o ritmo cardíaco do rapaz. Sua pele ficou fria, pálida e sudorética. Uma sensação de vertigem fazia Pedro sentir-se arremessado num abismo. Sua vista começou a escurecer pela segunda vez nas últimas vinte e quatro horas... Ou seria nos últimos sessenta anos?

Gilberto de Almeida
05/08/2013


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