sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Naquele Dia Ele Acordou em Paz


      Naquele dia ele acordou em paz.

      Porque acordou em paz, surpreendeu-a com um beijo e ela se enterneceu.

      Porque acordou em paz, tomou um banho demorado, o espírito sereno, sob a água quente a escorrer-lhe pelo corpo e a amenizar seus pensamentos.

      E ela, porque beijada de surpresa, acariciada na alma por um gesto há muito esquecido, dava incentivo à esperança e antecipava o romance com seu amado.

      Porque ele acordou em paz, ela já não murmurava tanto, já não se queixava da vida com tanta insensatez. Abrandou a intolerância da véspera e iniciava o dia com o coração mais leve.

      E quando os dois encontraram-se para o desjejum, ela não praguejou contra Valquíria, a auxiliar doméstica, como sempre. Antes disso, teceu comentário suave, muito mais ameno que de costume, mais por hábito, que por prazer.

      E porque ela não praguejara, também ele, que estava em paz, decidiu permanecer calado. Calou o discurso inútil que iniciaria sobre a administração doméstica e não cogitou na hipótese provocativa de demitir a assistente do lar. Também não reclamou da atitude da esposa, de sempre praguejar, de sempre estar insatisfeita com a vida, porque ela parecia serena, e ele acordara em paz.

      E porque ele não fez o seu discurso, nem cogitou na hipótese de demitir a auxiliar doméstica, nem tampouco reparou no desagradável praguejar da esposa - que não houve - nem em seu hábito de reclamar da vida, por isso ela não lhe falou dos débitos bancários cujo pagamento o marido olvidara e, ao invés disso decidiu, sem nada lhe dizer, que, num gesto de boa vontade, os saldaria ela própria, naquela mesma tarde.

      Foi assim que ele, porque acordou em paz, chegou ao trabalho também em paz. Não se sentia em inferno conjugal, não maldizia a esposa por reclamar de todos os fatos cotidianos, nem porque tornara, mais uma vez, insuportável, o seu desjejum, com um praguejar interminável! Não estava irritado consigo mesmo por haver deixado de pagar os tais débitos bancários e dar ensejo a mais um motivo de insatisfação e discórdia. Não estava irritado com nenhum desses fatos, porque nenhum deles aconteceu. E nenhum deles aconteceu, porque ele acordou em paz.

      E, então, em paz, compareceu ao trabalho pontualmente. Não se atrasou trinta minutos, como ocorreria se aquela discussão doméstica tivesse acontecido. E, porque não se atrasou, teve tempo suficiente para revisar com tranquilidade o assunto da reunião das nove e trinta da manhã. E, havendo revisado sua apresentação, com serenidade e lucidez, porque estava em paz, percebeu um erro no cálculo dos custos que, em outras circunstâncias, não perceberia; além disso, atentou para a possibilidade de modificar radicalmente a primeira parte do projeto, mudança esta que produziu um impacto positivo aos olhos do cliente na reunião que se encerrou dali a duas horas.

      Por isso, porque acordou em paz, porque não compareceu com atraso ao serviço naquele dia, porque seus pensamentos estavam lúcidos e coesos e porque, em decorrência de todas essas circunstâncias, não somente pôde corrigir a tempo os cálculos de custos, como também apresentou uma ideia inovadora responsável por conquistar definitivamente o cliente, por tudo isso, ele não somente deixou de ser demitido naquele mesmo dia - o que teria acontecido de outro modo - mas foi, logo após a reunião, chamado à sala de seu superior, satisfeitíssimo que estava com seu trabalho, sendo promovido ao cargo de Vice-Diretor de Departamento.

      E ela, porque ele acordou em paz, decidiu caminhar, decidiu pensar na doce surpresa daquele beijo matinal, acalentando ternas esperanças a respeito do relacionamento. E, caminhando, dirigiu-se ao banco. Lá, sentindo-se leve como uma pluma, pagou os títulos em atraso, pouca atenção prestando a esse fato burocrático e corriqueiro.

      E isso, o fato de ela haver quitado os débitos exatamente naquele dia, foi providencial. Porque ele, se não tivesse acordado em paz, teria sido demitido e, mesmo deixando o escritório muito cedo, não teria se dirigido a sua casa, nem ao banco e não teria saldado dívida alguma. Teria vagueado pela cidade, deprimido e sem rumo, apenas por não ter acordado em paz.

      Mas, porque ela efetuou o pagamento, mesmo distraída e com o pensamento evanescente, os títulos não foram protestados pelo banco dentro de exatamente quinze dias, como inevitavelmente se daria se ele não tivesse acordado em paz. E já que isso não aconteceu, não se deu também nessa data vindoura, a infeliz discussão motivada por esse fato financeiro desastroso na vida do casal, quando ambos trocariam acusações gravíssimas, o que culminaria na ruptura do matrimônio.

      Ao invés disso, porque ele acordou em paz, as contas foram pagas, e, porque ela decidiu caminhar até o banco, alegremente comovida com aquele beijo, por esse motivo, quando retornava, reparou na existência da floricultura a meia quadra de distância. E porque reparou na floricultura, também notou os belos cravos vermelhos, a lembrarem o dia no qual conhecera o seu amado. Então, por causa daquela paz, daquele beijo, daquela decisão de pagar as contas ela própria e de caminhar, ela acabou comprando cravos e teve a ideia de preparar um jantar especial para o marido...

      E ele, por ter sido promovido, por haver passado um dia memorável no escritório, ao final do expediente não se dirigiu diretamente ao lar. Satisfeitíssimo que estava, pensou na esposa com inesperada ternura e desviou o caminho com a intenção definida de lhe comprar um buquê de rosas. E por estar assim tomado de uma emoção terna e amorosa, escreveu-lhe num cartão, carinhosamente, as mesmas palavras que pronunciara no dia em que, pela primeira vez, declarara seu amor a ela.

      E retornando ao lar, porque acordou em paz, viu-se diante de uma mesa posta com ternura, de um arranjo de cravos carinhosamente preparado e de um ambiente de candura e romantismo inesperados, denunciando sentimentos que há muito tempo não contava ver brotarem no coração de sua mulher.

      Ao entregar-lhe seu buquê de rosas, acompanhado de declaração tão cândida e suave, suas almas se enlaçaram e aquele instante se consumou numa noite de amor sem passado, nem futuro, cujo presente duradouro foi como mágica a transformar-lhes as vidas daí para sempre...

      E, finalmente, naquele dia especial, essa magia de “alguém que um dia acorda em paz”, produziu, meses depois, uma linda criança de cabelos escuros e olhos azuis, a quem chamaram Pedro e que ainda daria muito o que falar...

Gilberto de Almeida
16/08/2013

2 comentários:

  1. Extraordinário!
    O que comentar além disso?
    Que eu estava precisando ler algo que tocasse a minha'lma.
    Obrigado por disponibilizar texto tão belo.
    Abraço fraterno.

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    1. Obrigado pelo comentário generoso, Jota Alves. E obrigado por me levar à releitura desse texto. Fez bem a mim também. Um abraço fraterno.

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